Doutrina Segunda, 23 de Abril de 2012 10h58 PAULA NAVES BRIGAGÃO: Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado. Aprovada no Concurso Público para Notários e Registradores do Estado de MG. Mestranda em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa. Escritora na área jurídica.
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O Tribunal Penal Internacional e os Direitos Humanos
» Paula Naves Brigagão
Agradecimentos:
Agradeço aos meus pais Paulo Brigagão e Maria Aparecida Naves Brigagão, in memorian, pela vida e formação acadêmica.
Aos meus professores de Mestrado, pelo imenso incentivo.
Ao Bruno Ferreira Sampaio, por ter me ensinado coisas simples que fazem toda a diferença.
A Deus, princípio, meio e fim de tudo aquilo que faz sentido na vida.
À minha tia Eunice, pela eterna dedicação.
Prefácio.
A presente obra produzida como fruto de trabalho da autora corresponde a uma compilação aprimorada de uma densa pesquisa acerca do Tribunal Penal Internacional e os Direitos Humanos.
Seu público alvo é o operador do Direito em geral visando-lhes proporcionar um quadro rico em detalhes do tema em epígrafe.
Desejamos a todos que tirem o melhor proveito desse trabalho para que o cenário jurídico fique mais completo.
Rodrigo Campos Da Silva Fernandes ( Procurador do Estado)
-------------------------------------------------------------------------------- Resumo:
Este trabalho trata da situação do Tribunal Penal Internacional, dando-se maior ênfase à análise dos mecanismos por ele ofertados de proteção aos Direitos humanos e as suas respectivas sanções. Serão abordados, com acuidade,de uma forma sucinta, os principais princípios norteadores do Tribunal de Haia, destacando-se a diferença entre este os demais Tribunais ad hoc criados no decorrer da História.
Finalmente, será abordada a questão em si da compatibilidade entre o texto constitucional brasileiro e o Estatuto de Roma,demonstrando os fundamentos jurídicos para tanto.
Palavras chave: Tribunal Penal Internacional; Direitos Humanos, Constituição da República.
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Sumário: (1.1) A criação do Tribunal Penal Internacional e a posição chefiada Pelos Estados Unidos da América, na atualidade. ; (1.2) Tribunal Penal Internacional x Tribunais ad hoc.; (1.3) A jurisdição doméstica de um país de braços dados com a soberania. ; (1.4) Princípios estruturais do Tribunal Penal Internacional: 1.4.1) Princípio da Complementaridade. 1.4.2) Princípio da Universalidade. 1.4.3) Princípio da Responsabilidade Penal Individual. 1.4.4) Princípio do Juiz Natural. 1.4.5) Princípio da Legalidade. 1.4.6) Princípio da Imprescritibilidade ; 1.5) Crimes de competência do Tribunal Penal Internacional. 1.5.1) Crime de genocídio. 1.5.2) Crimes contra a humanidade. 1.5.2.1) Discriminação Racial. 1.5.2.2) Tortura. 1.5.2.3) Crianças e Adolescentes. 1.5.2.4) Crimes sexuais. 1.5.2.5) Índios1.5.3) Crime de Agressão.; (1.6) O TPI e a Constituição da República Brasileira.; 1.7) Conclusão 1.8) Bibliografia.
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1.1)A criação do Tribunal Penal Internacional e a posição chefiada Pelos Estados Unidos da América, na atualidade.
O Tribunal Penal Internacional é filho legítimo do Estatuto de Roma, que guarda compatibilidade lógica de nomenclatura com o local de sua aprovação; qual seja: Roma, 1988. Diretamente vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) e detentor de personalidade jurídica própria ostenta no cenário mundial o papel de uma Corte Criminal Permanente, localizada geograficamente em Haia, na Holanda.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, formalmente falando, obteve a aprovação de não menos que cento e vinte (120) Estados, embora grande parte do território do planeta tenha se subtraído (por vontade própria) de sua Jurisdição. Registre-se, pois, sete (7) votos contrários a sua aprovação, com vinte e uma (21) abstenções. Dentre os votos contrários, elencamos o voto da maior potência mundial; qual seja, os Estados Unidos da América, caminhando ao seu lado os seguintes países: China, Filipinas, Israel, Índia, Sri Lanka e Turquia.
Segue a pergunta que não quer calar: Os Estados Unidos da América, ao não ratificar o Estatuto de Roma, assumiu uma postura diametralmente contrária a sua criação mundialmente falando? A resposta negativa se impõe, por mais paradoxal que isso possa parecer. Do contrário ficaria sem sentido explicar a direta participação da maior potência do planeta no que tange ao alcance material do crime de genocídio.
No ano de 2000, devido à péssima repercussão internacional do seu voto contrário à criação do Tribunal Penal Internacional, Os Estados Unidos da América estendeu “bandeira branca” à Corte Criminal Permanente. Subscreveu o Estatuto de Roma, manifestando, ainda que de forma implícita, o desejo de colaborar com o Tribunal.
Ainda que não o tenha ratificado e, assim, ainda que tenha notificado expressamente o Secretário Geral das Nações Unidas no ano de 2002, em razão do atentado terrorista ocorrido em 11 de setembro do mesmo ano, de que não possuía a intenção de se tornar parte no Tratado (em razão do medo em perder a sua soberania, já ameaçada por bombas), ainda assim, não se pode perder de vista a sua posição de amigo da Corte, ente colaborador ou qualquer outra nomenclatura a que se queira dar.
A explicação acima se justifica pelo registro de propostas até então apresentadas. No escólio de Valério de Oliveira Mazzuoli: “Países como os Estados Unidos tiveram, contudo, a oportunidade de oferecer as suas propostas para o alcance material do crime de genocídio ao grupo de trabalho sobre os elementos do crime”. (Valério de Oliveira Mazzuoli Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, 2ª edição, p.39, Revista dos Tribunais).
Assim, o Estatuto conceitua o crime de genocídio como qualquer ato praticado com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial e religioso, encampando: (1) matar membros do grupo; (2) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (3) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capaz de ocasionar-lhes a destruição física, total ou parcial; (4) adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo, e, (5) efetuar a transferência forçada do grupo para outro grupo.
Ainda sob o aspecto formal cumpre a nós tecermos as seguintes considerações: O Estatuto de Roma, apesar de sua nomenclatura Estatuto ostenta a natureza jurídica de um tratado. Sabemos todos que não é rótulo que muda a substância das coisas. Assim, o tratado nada mais significa que um acordo internacional concluído entre Estados em forma escrita e regulado pelo Direito Internacional, consubstanciado em um único instrumento ou em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua designação específica. Na ótica mais abalizada de Francisco Rezek, trata-se de “todo acordo formal concluído entre sujeitos de Direito Internacional Público, e destinado a produzir efeitos jurídicos (cf. Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado, 3ª edição, RT).
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, materialmente falando, representou um avanço gigantesco no contexto político, social e cultural entre os povos; pois graças a ele conseguiu-se obter o imprescindível consenso para levar a julgamento por um Tribunal de índole internacional, políticos, chefes militares e pessoas comuns praticantes de crimes gravíssimos que lesam a humanidade como um todo e, que, até o presente momento tinham ficado impunes, sob o manto da soberania. Constitui, pois, o retrato maior da efetividade da proteção internacional dos Direitos Humanos.
Ensina-nos Oscar López Goldaracena: “ La implementación del Estatuto de Roma representa una excelente oportunidad para que los Estados que aun no han incorporado las infracciones graves de los Convenios y Protocolos de Ginebra y demás instrumentos internacionales, revisen y actualicen toda su normativa interna en relación con las obligaciones que emanan del Derecho Internacional Humanitario, desarrollando una legislación adecuada en lo vinculado con la tipificación, persecución y juzgamiento de los crímenes de guerra. Sin perjuicio, también resulta una oportunidad inestimable para cumplir con las obligaciones que impone el derecho internacional de los derechos humanos en relación con otros crímenes internacionales”. ( GODARACENA, Oscar López, Cooperación Con La Corte Penal Internacional. Montevideo. Uruguay. 1ª Edición. FCU, 2008.).
1.2)Tribunal Penal Internacional x Tribunais ad hoc.
Os Tribunais ad hoc guardam a natureza jurídica de tribunais de exceção, criados posteriormente a prática do fato delituoso - definido como crime ou contravenção penal, perpetrados por indivíduos e em frontal violação aos bens jurídicos mais caros a que a ordem jurídica busca proteger. Vislumbrando a paz como bússola a evitar um mal maior frente aos crimes bárbaros até então existentes, a ideia de uma corte criminal internacional passou a significar o sonho dourado aspirado por muitos países massacrados no contexto mundial, tendo em vista que as atrocidades já ultrapassavam os limites da barbárie frente às guerras e, por conseqüência, os ataques bélicos simbolizavam sem nenhum exagero um passo para o fim dos tempos.
No mundo a sensação de impunidade passou a incomodar governantes e governados, fato esse que levou um grito por justiça e, com ele, a instituição nos anos de 1993 e 1994 de dois tribunais ad hoc (Nurembergue e Tóquio); com o real e firme propósito da intervenção da comunidade internacional na ex – Iuguslávia frente a uma luta fratricida que lançou sérvios contra croatas e outras etnias. Igual proteção fora oferecida ao território de Ruanda, palco em que extremistas hutus reduziram a pó os rivais da nação tutsi, em frontal violação as regras mais “comezinhas” de dignidade da pessoa humana, coisificando o homem como objeto a ser conquistado ou perdido em uma disputa internacional afeta a pobreza de espírito dos pseudo-s detentores do poder.
A intervenção por uma Corte Internacional Superior aos entes envolvidos passou a ser, pois, uma questão de sobrevivência a própria conservação da espécie humana.
Todavia, se por um lado os Tribunais ad hoc, até então instituídos, tiveram o condão de criar o precedente do julgamento de pessoas que cometeram crimes considerados de caráter interno, que até então se subtraiam da legislação penal internacional face à irresponsabilidade do agente causador do dano, reafirmada no conceito distorcido de soberania, tendo em vista que essa nunca foi sinônima de massacre; por outro lado, a História registrou o lado negativo dos respectivos tribunais de exceção; qual seja a falta de autonomia do Tribunal preso as correntes por ele mesmo criadas.
Assim, os tribunais ad hoc, no julgamento dos delitos a ele afetos, dependiam de decisão do Conselho de Segurança da ONU, que oscilava de acordo com as convicções políticas do momento. São, pois, carecedores de legitimidade, força moral e poder político. A título de exemplo, podem ser mencionados os massacres perpetrados no Camboja - em que surrupiadas as vidas de quase um milhão de pessoas e, como coroamento aos atos praticados, a impunidade dos seus responsáveis em frontal desacordo ao espírito de justiça que deve reinar, globalmente falando.
A grande verdade é a de que em um Estado que se intitula um Estado Democrático de Direito, em perfeita consonância de legitimidade na tomada de decisões com a vontade popular, deve nele reinar o princípio do juiz natural, princípio esse totalmente compatível com o Tribunal Penal Internacional e incompatível com os tribunais de exceção. Garante-se a igualdade com a pré-determinação do juízo competente e de vedação para julgamentos casuísticos.
Nas preciosas lições de Pontes de Miranda: “a proibição dos tribunais de exceção representa, no Direito Constitucional Contemporâneo, garantia constitucional: é Direito ao juízo legal comum, indicando vedação à discriminação de pessoas ou casos para efeito de submissão a juízo ou tribunal que não o recorrente para todos os indivíduos”. (L. A. D. Araujo e V. Serrano Nunes Júnior, Curso de Direito Constitucional, 2002, p.141).
Desta feita, O Tribunal Penal Internacional “sai na frente” dos tribunais ad hoc em seara democrática, ou seja, enquanto estes últimos são criados pelo Conselho de Segurança da ONU composto de quinze (15) membros (15 países, dos 189 que o integram), destituídos de legitimidade, força moral e poder jurídico, embora com o fim nobre de sinalizar as atrocidades cometidas no mundo não ostentam o status de Cortes predeterminadas em lei constituídas anteriormente aos fatos, em clara violação ao princípio do juiz natural poluindo o sistema, sem o respeito devido à democracia que deve vigorar não apenas internamente com o Estado parte; mas, sobretudo, com reflexos externos a ditar uma democracia internacional e igualitária entre os Estados, partes ou não.
Sobre o tema, ensina-nos com maestria Valério De Oliveira Mazzuoli: “Apesar do entendimento já consagrado pela consciência coletiva mundial de que aqueles que perpetraram atos bárbaros e hediondos contra a dignidade humana devam ser punidos internacionalmente, os tribunais ad hoc não passaram imunes a críticas, dentre elas a de que tais tribunais (que têm caráter temporário e não permanente) foram criados por resoluções do Conselho de Segurança da ONU (sob o amparo do Capítulo VII da Carta das nações Unidas, relativo às ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão), e não por tratados internacionais multilaterais, como foi o caso do Tribunal Penal Internacional, o que poderia prejudicar (ao menos em parte) o estabelecimento concreto de uma justiça Penal Internacional de caráter permanente”. (Valério de Oliveira Mazzuoli. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, 2ª edição, Revista dos Tribunais).
Estabelecer Tribunais Penais Internacionais ad hoc por meio de resoluções (ainda que com isso se resolva o problema da imparcialidade e insuspeição dos Estados partícipes daquelas guerras) significa torná-los órgãos subsidiários do Conselho de Segurança da ONU, para cuja aprovação não se requer mais do que nove votos dos seus quinze membros, incluídos os cinco permanentes. Este era, aliás, um argumento importante, no caso da antiga Iuguslávia, a favor do modelo de resolução do Conselho de Segurança, na medida em que o modelo de tratado seria muito moroso ou incerto, podendo levar anos para a sua conclusão e entrada em vigor internacional.
Outra crítica assaz contundente voltada àqueles tribunais ad hoc – que já se ouvia desde a criação do Tribunal de Nurembergue – era no sentido de que os mesmos violavam a regra basilar do Direito Penal, segundo a qual o juiz, assim como a lei, deve ser pré-constituído ao cometimento do crime e não ex pos fato.
Foi justamente pelo fato de que tais tribunais tiveram a sua criação condicionada pelos fatos que imediatamente a antecederam, que alguns países, dentre eles, o Brasil, ao aprovarem a instituição de tribunais ad hoc, expressamente expressaram o seu ponto de vista pela criação, por meio de um tratado internacional, de uma corte penal internacional permanente, imparcial, competente para o processo e julgamento dos crimes perpetrados depois de sua entrada em vigor no plano internacional.
Mas ainda que existam dúvidas acerca do alcance da Carta das Nações Unidas em relação à legitimação do Conselho de Segurança da ONU para a criação de instância judiciária internacionais ad hoc, as atrocidades e os horrores cometidos no território da ex – Iuguslávia e em Ruanda foram de tal ordem e de tal dimensão que parecia justificável chegar-se a esse tipo de exercício, ainda mais quando se têm como certas algumas contribuições desses tribunais para a teoria da responsabilidade penal internacional dos indivíduos, a exemplo do não reconhecimento das imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo Direito Internacional e do não reconhecimento de ordens superiores como excludentes de responsabilidade internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em resolução da III Seção Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas proclama: “A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, em promover o respeito a esses direitos e liberdades e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, em assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros quanto entre os povos dos territórios sob a sua jurisdição”.
A Carta das Nações Unidas de 1945 consolida o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses direitos ao propósito e finalidade das Nações Unidas. Definitivamente, a relação de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto de instituições internacionais e do Direito Internacional, bastando, para tanto, examinar os arts. 1.º (3), 13, 55, 56, 62 (2 e 3) da Carta das Nações Unidas.
Nos termos do art.1.º (3), fica estabelecido que um dos propósitos das Nações Unidas é alcançar a cooperação internacional para a solução de problemas econômicos, sociais, culturais ou de caráter humanitário e encorajar o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Neste sentido, cabe à Assembléia Geral iniciar estudos e fazer recomendações, com o propósito de promover a cooperação internacional para a solução de problemas econômicos, sociais, culturais ou de caráter humanitário e encorajar o respeito aos Direitos Humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, em conformidade com o art. 13 da Carta. Também ao Conselho Econômico e Social cabe fazer recomendações, com o propósito de promover o respeito e a observância dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, bem como preparar projetos de Convenções Internacionais para este fim, nos termos do art. 62 da Carta da ONU.
O art. 55 reforça o objetivo de promoção dos Direitos Humanos, quando determina: “Com vistas à criação de condições de estabilidade e bem estar, necessárias para a pacífica e amistosa relação entre as Nações, e baseada nos princípios da igualdade dos direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão o respeito universal e a observância dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. O art. 56 reafirma o dever de todos os membros das Nações Unidas em exercer ações conjugadas ou separadas, em cooperação com a própria organização, para o alcance dos propósitos lançados no art. 55. Alguma discussão há sobre a natureza jurídica da Declaração, assim como sobre seu valor jurídico.
O doutrinador Carlos Weis, escrevendo a respeito, afirma que a Declaração não decorre do surgimento de direitos subjetivos aos cidadãos, nem obrigações internacionais aos Estados, uma vez tratar-se de recomendação. Assinala, todavia, sua contribuição, pelo fato de ter influenciado vários textos constitucionais, sustentando que refletiu e deu origem a vários tratados internacionais, os quais, sim, com força vinculante[1].
Com maestria Flávia Piovesan, sobre o tema, aduz que “a Declaração Universal não é um tratado. Foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas sob a forma de resolução, que, por sua vez, não apresenta força de lei”[2].
Sobre o tema Fábio Konder Comparato, por seu turno, professa que “tecnicamente, a Declaração Universal do Homem é uma recomendação, que a Assembléia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta das Nações Unidas), artigo 10”[3].
Embora a Declaração Universal de 1948 não configure um tratado internacional, Flávia Piovesan e Fábio Konder Comparato, entre outros, entendem que a Declaração tem força jurídica obrigatória e vinculante, pelo qual os Estados, à luz desse documento, têm o compromisso de assegurar tais direitos às pessoas. Assim, entendem que a Declaração integra o Direito Internacional, que, a par dos tratados e convenções, também recebe o influxo dos costumes e princípios gerais de direito.
Arrematando o tema, J. A. Lindgren Alves elucida que as declarações, em contraposição aos tratados, convenções, pactos e acordos, não têm força jurídica compulsória. Assinala, todavia, o caráter especial e peculiar da Declaração Universal.
Nesse sentido, e tendo em conta que a Declaração Universal é encarada como uma interpretação autorizada da Carta das Nações Unidas, “a Declaração teria, para alguns intérpretes, os efeitos legais de um tratado internacional”. Para outros, porém, “a força da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a de qualquer outro documento congênere, advém de sua conversão gradativa em norma consuetudinária”[4].
Entretanto, a grande mácula da Carta das Nações Unidas, nesse ponto, ainda é a de que jamais o Conselho de Segurança poderá criar tribunais com competência para julgar e punir eventuais crimes cometidos por nacionais dos seus Estados-membros com assento permanente.
Daí o motivo pelo qual avultava de importância a criação e o estabelecimento efetivo de uma instância penal internacional com caráter permanente e imparcial, instituída para processar e julgar os acusados de cometimento dos crimes mais graves já conhecidos no planeta, que ultrajam a consciência da humanidade e que constituem infrações ao próprio Direito Internacional Público, a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra e dos crimes de agressão.
(1.3) A jurisdição doméstica de um país de braços dados com a soberania.
Ao nos reportarmos ao aspecto cronológico destacamos a Idade Média como ápice do Estado Moderno na Europa face à tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos. O dito Estado Moderno entrava no cenário mundial com características peculiares, dentre elas, a soberania que nada mais significava que a subtração das competências normativas de vários centros de poder, até então existentes, passando o Estado ao posto de summa potestas em cotejo aos demais poderes que dentro dele atuavam.
Uma definição concisa e precisa acerca de soberania nos foi ministrada com maestria por Bodin que profetizava: “A soberania era o poder absoluto e perpétuo do Estado”. (Cf. Jean Bodin. Lês six livres de La republique – darmstad- Scientia Aalen, 1961 – fac-símile na edição francesa de 1583, LivI, chap. VIII p.122).
A inexistência de um direito absoluto para esses “direitos”, já que a dogmática jurídica se caracterizava pela historicidade, sendo o Direito passível de constantes modificações, advindas da sociedade, da cultura, da moral, e, sobretudo, da economia, se alteravam dia após dia. Não se pôde dar, assim, um fundamento eterno para algo que necessariamente sofreria modificações.
Um preceito só pode ser considerado jurídico quando nele estiver presente o caráter repressivo, que lhe concede eficácia. Se a Ordem Jurídica nada pode fazer para assegurar o cumprimento desses preceitos, eles não podem ser denominados “direito”, pois são meras expectativas de conduta, meras expressões de boas intenções que orientam a ação para um futuro indeterminado, incerto.
Atualmente, porém, há uma tendência à “positivação” dos direitos humanos, de forma a inseri-los nas Constituições Estatais, através da criação de novos mecanismos para garanti-los, além da difusão de sua regulação por meio de mecanismos internacionais, como os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos.
Assim, após a conquista de sua supremacia interna o Estado conquistou a soberania de reflexos externos que, em outras palavras, nada mais significa que a sua independência que, por conseqüência, desaguou na cláusula de jurisdição doméstica, termo utilizado para traduzir o princípio da não intervenção de organismos internacionais nos assuntos internos dos membros, princípio esse encampado expressamente no art. 2º, parágrafo 7º, da Carta da ONU.
Registre que o princípio da jurisdição doméstica acoberta a responsabilidade ou irresponsabilidade do Estado a nível internacional, sendo palco para o cometimento de genocídio, massacres, assassinatos, torturas, mutilações e demais ofensas aos direitos humanos e prevaleceu por um bom tempo na história da humanidade corporificando, sobretudo, doutrinariamente com a obra de Maquiavel, em 1503: O Príncipe, segundo a qual: “um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerados bons, sendo freqüentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade e a religião”. (Cf. Nicoló Machiavelli. Il príncipe e pagine di altre opere – Padova: Cedam, 1940, p. 120).
O manto da irresponsabilidade dos governantes somente caiu por terra depois da primeira guerra mundial. Houve, pois, um verdadeiro clamor da sociedade internacional pela efetiva consagração da responsabilidade penal internacional, ainda que tal pretensão não fosse considerada absolutamente imparcial e universal. As teses de que os Estados deveriam ter uma soberania absoluta e sem limites cederam lugar a que os doutrinadores afirmassem que “a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU, em 1948 e, como conseqüência, passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional that king can do no wrong”[5].
Ensina-nos Valério de Oliveira Mazzuoli: “A segunda grande guerra, que ensangüentou a Europa entre 1939 e 1945, ficou marcada na consciência coletiva mundial por apresentar o ser humano como algo simplesmente descartável e destituído de dignidade e direitos. O que fez a chamada Era Hitler foi condicionar a titularidade de direitos dos seres humanos ao fato de pertencerem à determinada raça, qual seja a raça pura ariana, atingindo-se, com isto, toda e qualquer pessoa destituída da referida condição. Assim, acabaram os seres humanos tornando-se refugiados e apátridas. E por faltar-lhes um vínculo com a ordem jurídica nacional, acabaram não encontrando lugar num mundo como do Século XX, totalmente organizado e ocupado politicamente. Conseqüentemente, tais vítimas do regime nazista acabaram se tornando – de fato e de direito – desnecessárias porque indesejáveis erga omnes, não encontrando outro destino senão a própria morte nos campos de concentração”. (Valério de Oliveira Mazzuoli (Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, 2ª edição, p.25, Revista dos Tribunais).
1.4)Princípios estruturais do Tribunal Penal Internacional
Antes de adentrarmos ao estudo específico dos princípios integrantes do Tribunal Penal Internacional iremos delimitar o que se entende por princípios e regras universalmente aceitos.
A interpretação dos princípios se faz através da ponderação: o operador do direito indicará o princípio que mais se adéqua à resolução do caso concreto, sem que, com isso, venha a fulminar o princípio confrontado. Ou seja, a rivalidade entre princípios não acarreta o alijamento do “perdedor” do ordenamento jurídico. Já no tocante às regras jurídicas, a interpretação se dá no campo da validade; uma regra, ao prevalecer sobre outra, estará alijando a norma derrotada do ordenamento jurídico, exteriorizando uma equação binária “de tudo ou nada”. Há que se destacar também que os princípios são menos densos do que as regras. Por conseguinte, os princípios são mais genéricos do que as regras.
O princípio é, portanto, um vetor para as soluções interpretativas. É uma regra básica, com âmbito de validade maior, que exerce, dentro do sistema jurídico, função axiologicamente mais importante do que a regra, mesmo a constitucional. Assim, ao interpretar, o aplicador do Direito não pode contrariar o sentido demonstrado, devendo caminhar na direção indicada por tal princípio, sob pena de feri-lo, o que tornará inconstitucional a interpretação. Também deve respeito aos princípios o legislador, uma vez que, ignorando suas disposições, criará lei contaminada pela inconstitucionalidade.
A atuação do Tribunal Penal Internacional lastreia-se sobre alguns princípios ditos fundamentais. A atuação do Tribunal Penal Internacional agasalha-se em alguns princípios basilares que lhes são fundamentais, dentre eles destaca-se: o princípio da complementaridade, o princípio da universalidade, o princípio da responsabilidade penal individual, o princípio da imprescritibilidade, o princípio do nullum crimem sine lege e nulla poena sine lege, o princípio do ne bis in idem, o princípio da não retroatividade, o princípio da exclusão da jurisdição relativamente aos menores de dezoito anos, o princípio do juiz natural, o princípio da responsabilidade de comandantes e outros superiores, o princípio do promotor natural e o princípio da irrelevância da função social. Iremos, pois, nos debruçar sobre os princípios em espécie.
1.4.1) Princípio da Complementaridade.
O princípio da complementaridade é apontado dentre os estudiosos do tema como um dos princípios mais importantes que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional. Nos moldes do art. 1º do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional (fixados nos termos do Estatuto), e será complementar às jurisdições penais nacionais. Molda-se, dessa maneira, o princípio da complementaridade, preservando-se o sistema jurídico interno, ao passo em que o Tribunal Penal Internacional só exercerá jurisdição em caso de incapacidade ou omissão dos Estados.
Ensina-nos o doutrinador Francisco Rezek: “Dentre os princípios fundamentais assentados no Tribunal Penal Internacional o princípio da complementaridade surge como um dos mais importantes. De acordo com o mesmo, a Corte somente atua se o Estado que tem jurisdição sobre determinado caso não iniciou o devido processo ou, se o fez, agiu com o intuito de subtrair o acusado à justiça ou de mitigar-lhe a sanção. Este postulado, à primeira vista, parece chocar-se com os fins colimados no Tratado de Roma, mas justifica-se porque compete em primeiro lugar aos Estados o dever de reprimir os crimes capitulados no Estatuto do Tribunal, até para que a repressão se faça de modo mais eficaz. A Corte, pois, atua apenas subsidiariamente agindo, sobretudo na hipótese em que ocorre a falência das instituições nacionais”. (cf. Francisco Rezek, Tribunal Penal Internacional: Princípio da Complementaridade e Soberania, em Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n.11, Brasília: agosto de 2000).
Assim, o Tribunal Penal Internacional não terá primazia na competência de julgamento àqueles que cometerem os crimes previstos em seus Estatutos, atuando subsidiariamente ao Estado do indivíduo-infrator.
Assim, dita norma internacional, vigente no ordenamento interno, dentre outras disposições, estabeleceu a competência jurisdicional do Tribunal Penal Internacional (TPI) para o julgamento dos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra, e de agressão e definiu as respectivas condutas penalmente relevantes. Logo, indaga-se: caso um brasileiro cometa um desses crimes, qual o órgão jurisdicional competente? E qual a lei penal aplicável a espécie? Ambas as questões resolvem-se à luz do princípio da complementaridade.
A resposta deve ser elaborada a partir do exame dos arts 1º e 17 do Estatuto de Roma. Dispõe o art. 1º que a competência do Tribunal Penal Internacional é complementar às jurisdições penais nacionais. Isso significa dizer, em primeira leitura, que a atuação do Tribunal Penal Internacional não subtrai a competência jurisdicional interna, mas, pelo contrário, pressupõe a sua não incidência. O art. 17, I, e suas alíneas a, b, c e d, cuidam das condições de admissibilidade da competência do TPI, de tal sorte que um determinado caso não será admitido se: a) for objeto de inquérito ou procedimento criminal por parte do Estado que tenha jurisdição sobre ele; b) tiver sido objeto de inquérito ou procedimento criminal, e o Estado tenha decidido não dar seguimento; c) a pessoa tiver sido definitivamente julgada, e d) o fato não for suficientemente grave a justificar a intervenção do Tribunal. Nas alíneas a e b, tem-se a ausência de vontade ou a incapacidade do Estado interessado em levar a cabo a investigação ou o procedimento criminal instaurado, como condicionante da intervenção do Tribunal Penal Internacional. A alínea c funda-se na vedação do ne bis in idem, na medida em que busca evitar o julgamento do mesmo fato por duas vezes. E, finalmente, na alínea d, a constatação de ausência de gravidade da infração afasta por si só o interesse a justifica a atuação do Tribunal Penal Internacional. Eis o primeiro sentido do princípio da complementaridade, segundo o qual a atuação do Tribunal Penal Internacional tem o caráter subsidiário diante da jurisdição nacional, cujos critérios delimitadores são a existência ou não: a) de coisa julgada; b) de vontade e disposição de punir por parte do Estado considerado; e c) a gravidade da infração.
Nessa ótica reconhece-se que a jurisdição do TPI não antecede, nem tampouco se sobrepõe à jurisdição nacional, mas simplesmente a complementa, pressupondo sempre o fundado receio de que os responsáveis pelas condutas descritas no art. 5º do Estatuto de Roma possam permanecer injustificadamente impunes. Seja a intenção deliberada por parte do Estado que detenha jurisdição para o caso em não punir determinado fato, seja a ausência de capacidade ou mesmo estrutura para tal fim, em ambas as hipóteses, verificada a ocorrência de um dos crimes descritos no art. 5º e seguintes do Estatuto, a atuação do TPI estará legitimada.
Registre-se, igualmente, que uma vez presentes as condições de admissibilidade, o TPI poderá exercer a sua jurisdição se: a) houver denúncia de uma Estada parte ao procurador; b) houver denúncia pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ao procurador; c) o procurador agir de ofício, sem provocação (art. 13).
Na lavra de Bernardo Gonçalves Fernandes: “A competência do Tribunal Penal Internacional é complemento das jurisdições penais nacionais, nos termos do art. 1º do estatuto de Roma. Portanto, a atuação do Tribunal será restrita às hipóteses nas quais os Estados, a quem cabe a responsabilidade originária de processar e julgar os crimes cometidos por seus nacionais, não se mostrarem capazes ou mesmo não demonstrarem vontade efetiva de punir os seus criminosos. Nesse sentido, isso ocorrerá somente quando houver falha ou omissão. Nesses termos, o Tribunal Penal Internacional, com base na complementaridade não substitui os Tribunais nacionais, pelo contrário, só atuará subsidiariamente às cortes nacionais, uma vez que as mesmas possuem prioridade no exercício da jurisdição. A doutrina ressalta ainda que o princípio da complementaridade aplica-se não apenas aos Estados partes, mas também em relação aos estados não partes”. (Curso de Direito Constitucional, Bernardo Gonçalves Fernandes, 2ª edição. Editora Lúmen Juris).
1.4.2) Princípio da Universalidade.
Face o princípio da universalidade, os Estados – partes disponibilizam-se integralmente a jurisdição da Corte, não sendo crível subtrair de sua apreciação determinados casos concretos ou situações concretas. E o que de melhor exemplifica o que acaba de ser dito é o caso do Estatuto de Roma vedar reservas; ou seja, não se mostra possível que por uma declaração unilateral feita por um estado – parte possa o mesmo aderir ao Estatuto de Roma com o objetivo de excluir ou modificar os efeitos jurídicos do mesmo. Importante que se frise que a reserva só ocorre em se tratando de tratados multilaterais, não ocorrendo em tratados bilaterais sob pena de afetar o equilíbrio dos mesmos.
As reservas, para serem válidas, portanto, necessitam do preenchimento de dois requisitos; quais sejam uma condição de forma e outra de fundo. A condição de forma é a subsunção da mesma apresentada por escrito e a de fundo subsume-se em sua aceitação pelas partes contratantes. Dessa feita, a reserva guarda a natureza jurídica de uma manifestação de vontade.
Pelo princípio da universalidade o Tribunal Penal Internacional mitiga qualquer autonomia da vontade no sentido de aderir ao estatuto de Roma para dele subtrair determinados crimes através de reservas, no interesse do próprio estado-parte; vale dizer, a reserva, de fato, é uma manifestação de vontade, mas, diga-se de passagem: trata-se de uma manifestação de vontade parcial, tendo em vista que o estado não se obriga a todas as disposições, mas tão-somente apenas por uma parte delas, como, a título de exemplo, um tratado que contivesse vinte e uma regras e o Estado se dispusesse a cumprir apenas vinte delas.
Uma informação se revela de fundamental importância: havendo, pois, dúvida em se aplicar ou não determinada reserva, haverá uma regra geral que dirá: a reserva não poderá atingir o objeto e a finalidade do tratado respectivo; regra essa encampada na Convenção de Viena. Logo, se um tratado é omisso quanto à possibilidade de reserva, há que se verificar se ela é compatível ou não com o objeto do tratado. A ONU (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS) estabelece as seguintes situações acerca da reserva: primeira: o Estado aceita a reserva. Há, pois, o tratado com a reserva, isto é, a reserva vai vigorar para o estado que a aceitou e a formulou; segunda: O estado não aceita a reserva, mas acha que ela é compatível com o tratado: a reserva não fere a essência do tratado.
Há que se ressaltar que o estatuto de Roma nada mais é que um tratado multilateral e como não há uma fórmula matemática, uma regra universal que determine sobre a elaboração de um tratado, muitas das respostas serão de plano, encontradas no próprio instrumento (tratado), no próprio procedimento de elaboração do mesmo. Dessa forma, num tratado, as partes convencionarão se cabe, ou não, reserva e quais as cláusulas que serão objeto de reservas. Assim procedeu formalmente o Estatuto de Roma, no sentido de impossibilitar aos estados que aderirem ao Tribunal penal Internacional a subscrição ou não de reservas; sob pena de uma situação ou caso concreto tornarem-se fonte de casuísmos dos Estados-partes, e afrontarem desse modo a isonomia e a Justiça.
Sobre o tema proposto disciplina com proficiência o doutrinador Valério de Oliveira Mazzuoli: “O Estatuto de Roma proíbe expressamente a possibilidade de sua ratificação ou adesão com reservas, nos termos do seu artigo 120. Andou bem o Estatuto, pois a possibilidade de aposição de reservas ao seu texto viola o objeto e a própria finalidade do tratado, que consiste em entregar à jurisdição do Tribunal os responsáveis pelos piores e mais bárbaros crimes cometidos no planeta. Ademais, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, no art. 19, c, proíbe a formulação de reservas incompatíveis com o objetivo e com a finalidade dos tratados. O disposto no art. 120 do Estatuto de Roma evita os eventuais conflitos de interpretação existentes sobre quais reservas são e quais não são admitidas pelo Direito Internacional, retirando dos países cépticos a possibilidade de escusa para o cumprimento de suas obrigações”.
Caso fossem admitidas reservas ao Estatuto, países menos desejosos de cumprir os seus termos poderiam pretender excluir (por meio da reserva) a entrega de seus nacionais ao Tribunal, alegando que tal ato viola a proibição constitucional de extradição de nacionais, não obstante ter o estatuto distinguido a entrega da extradição no seu art. 102 a e b. o impedimento da ratificação com reservas, portanto, é uma ferramenta eficaz para a perfeita atividade e funcionamento do Tribunal.
Nos termos do art. 121 e parágrafos do Estatuto, depois de anos de sua entrada em vigor, qualquer Estado-parte poderá propor-lhe alterações, submetendo o texto de propostas de alterações ao Secretário – Geral da Organização das Nações Unidas, que convocará uma Conferência de Revisão, a fim de examinar as eventuais alterações no texto. A adoção de uma alteração numa reunião da Assembléia dos Estados – partes ou numa Conferência de Revisão exigirá a maioria de dois terços dos Estados-partes, quando não for possível chegar a um consenso.
O Tribunal, contudo, não exercerá a sua competência relativamente a um crime abrangido pela alteração sempre que este tiver sido cometido por nacionais de um Estado-parte que não tenha aceitado a alteração, ou cometido no território desse Estado-parte.
1.4.3) Princípio da Responsabilidade Penal Individual.
Tal princípio guarda como nota característica o fato do indivíduo responder pessoalmente pelos seus atos, sem prejuízo da responsabilidade do Estado.
A marca das virtudes encampadas no Estatuto de Roma reside na consagração do princípio de acordo com o tal a responsabilidade penal por atos eminentemente violadores do Direito Internacional deve sobre pairar sobre os indivíduos que os praticam, deixando, pois de ter eficácia as eventuais imunidades e privilégios ou ainda a posição ou mesmo os cargos oficiais afetos sobre o indivíduo isoladamente ou em grupo. Assim, a tendência atual em todo o Direito Internacional (o qual faz parte o Estatuto de Roma, obviamente) é a irrelevância da qualidade oficial no que toca à persecutio criminis, ao julgamento e à aplicação da pena pelo Tribunal.
Reinou-se, então, no estatuto de Roma o postulado/princípio da responsabilidade dos agentes públicos, acoplado ao princípio da igualdade, onde a qualidade oficial dos acusados não pode servir de anteparo no que tange a eximir o indivíduo de qualquer responsabilidade criminal, menos ainda constituir motivo para a redução de pena.
Nos moldes do art. 25, e parágrafos, do Estatuto de Roma, o Tribunal tem competência para julgar e punir pessoas naturais, sendo tipo por individualmente responsável quem cometer um crime da competência do mesmo.
Preconiza o Estatuto que será considerado criminalmente responsável havendo a possibilidade em se punir pela prática de um crime da competência do Tribunal aqueles: a) que cometem esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outra pessoa e isso, independentemente, da eventual responsabilidade criminal que essa pessoa venha ou não a possuir; b) ordenar, solicitar ou instigar a prática desse crime, sob a forma tentada ou consumada; c) com o firme propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborador de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento de meios para a sua prática; e d) contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum.
Preconiza sobre o assunto Valério de Oliveira Mazzuoli: “O Estatuto de Roma repete a conquista do Estatuto do Tribunal de Nuremberg em relação aos cargos oficiais daqueles que praticaram crimes contra o Direito Internacional. Nos termos do art. 27, parágrafos 1º e 2º, do Estatuto de Roma, a competência do Tribunal aplica-se de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na sua qualidade oficial. Em particular a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro do governo ou de parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum poderá eximir a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do Estatuto, nem constituirá de per se motivo para a redução da pena. Diz ainda o Estatuto que as imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do Direito Internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa. A consagração do princípio da responsabilidade penal internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”. (Valério de Oliveira Mazzuoli Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, 2ª edição, p.70, Revista dos Tribunais).
Assim, o coroamento do princípio da responsabilidade penal internacional é, sem qualquer sombra de dúvidas, uma conquista maior da humanidade vista em seu aspecto globalizado, idéia essa que vem sendo sedimentada desde os tempos em Hugo Grotius lanço as bases do moderno Direito das Gentes (cachapuz de Medeiros, Antonio Paulo. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, cit. p.12). Trata-se, pois, de renomado jurista holandês que se insurgiu contra a ideia de que o Direito Internacional estaria vinculado tão-somente ás relações entre Estados. Tal jurista vislumbrava o instituto com ótica ampliativa, abarcando não somente Estados, mas também relações que envolviam diretamente os indivíduos, sem intermediações estatais.
Sob o mesmo ponto de vista caminhou o Estatuto de Roma, seguido o que se escreveu em Nuremberg, que assim prescreveu: “Crimes Contra o Direito Internacional são cometidos por indivíduos, não por entidades abstratas, e os preceitos de Direito Internacional fazem-se efetivos apenas com a condenação dos indivíduos que cometeram esses crimes” (Para uma crítica à assertiva, v. LOMBOIS, Claude, Droit penal International. Paris: DALLOS, 1971, p.146).
1.4.4) Princípio do Juiz Natural.
Uma das importantes garantias inerentes a clausula do devido processo legal é o direito fundamental do cidadão submetido ao Tribunal Penal Internacional ao juiz natural.
É, pois, uma garantia fundamental dos postulados maiores da vedação ao juízo ou tribunal de exceção e aquele que estipula que ninguém será processado senão pela autoridade competente; sendo, assim, postulado da conquista moderna.
Ensina-nos o conteúdo do princípio Luigi Ferrajoli: “Ela significa, precisamente, três coisas diferentes, ainda que entre si conexas: a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído pos factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais. No primeiro sentido, expresso, por exemplo, pelo art. 25 da Constituição Italiana, o princípio designa o direito do cidadão a um processo não prejudicado por uma escolha do juiz posterior ao delito e, portanto destinada a um resultado determinado. No segundo sentido, dedutível com alguma incerteza do mesmo art. 25 e do art. 102, par. 1º, designa a reserva absoluta da lei e a impossibilidade de alteração discricionária das competências judiciais. No terceiro sentido, expresso pelo art. 102, par. 1º, da Constituição, mas derrogado pelas jurisdições especiais previstas pelo art. 103, como também pela justiça política reservada pelos arts. 90 e 134 da mesma Constituição Italiana aos crimes presidenciais trata-se de um princípio de organização que postula a unidade de jurisdição e o seu monopólio conservado em uma mesma classe. Enquanto a pré- constituição legal do juiz e a inalterabilidade das competências são garantias de imparcialidade, sendo voltadas a impedir intervenções instrumentais de tipo individual ou geral na formação do juiz, a proibição de juízes especiais e extraordinários é antes uma garantia de igualdade, satisfazendo o direito de todos a ter os mesmos juízes e os mesmos procedimentos”. (FERRAJOLLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 472.).
O juiz natural nada mais significa que o juiz devido. Sob o prisma formal, juiz natural denota o juiz competente. Não é possível a existência de juízo após o cometimento do fato; sendo que a determinação do mesmo deve operar-se por critérios impessoais. Tribunal de Exceção é aquele criado para julgar um caso concreto específico. Os juízes de exceção também estão igualmente vedados no Tribunal Penal Internacional.
Sob o prisma material, a garantia do juiz natural significa a imposição de imparcialidade e da independência do órgão jurisdicional. Não basta simplesmente ser o juízo competência. Necessário se faz que seja imparcial, ou seja, subjetivamente capaz. Necessário também que se diga ser proibida a criação de juízo extraordinários, bem como a alteração das regras predeterminadas de competência.
Complementa a idéia acima Luigi Ferrajoli: “o problema do juiz natural relaciona-se, hoje, essencialmente ao poder de avocação, isto é, ao perigo de prejudiciais condicionamentos dos processos através da designação hierárquica dos magistrados competentes para apreciá-los, sejam judicantes ou inquiridores; e que o único modo de satisfazer plenamente o princípio é pré-constituir por lei critérios objetivos de determinação da competência de cada magistrado singularmente, e não só dos órgãos a que eles pertencem”. (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 474.).
Faz-se comum a terminologia promotor natural. Trata-se de um princípio. Nada mais denota que autoridade competente para o caso. O fato é que o princípio do juiz natural se ramifica, inclusive, para o âmbito administrativo se perfazendo em tribunais administrativos, bem como em repartições administrativas.
1.4.5) Princípio da Legalidade.
É cediço que o Direito deriva da Lei. Essa frase, do ponto de vista histórico, é mais ou menos recente. O Direito reside dentro das normas, mas não se limita a elas. Do contrário não nos defrontaríamos com leis tidas como injustas. E aí reside um paradoxo: se o Direito derivasse somente das leis não faria sentido falarmos em leis injustas – por que o que está na lei é o dever imposto! E a maior curiosidade que nos instiga é a de quem elabora as leis não são propriamente juristas (a Justiça) e sim políticos. A lei, portanto, tem uma função muito maior do que dizer o Direito. A lei tem, sobretudo, uma função de governo, na regulação da vida em sociedade aspirando ao bem comum. Tanto é assim que se justificou a criação de outro poder para se dizer o direito; qual seja o Poder Judiciário.
O positivismo jurídico leva a falsa crença de que o Direito se subsume na lei, o que não se mostra consentâneo com a realidade e muitas vezes a lei acaba por contrariá-lo.
Historicamente falando, o princípio da legalidade buscou as suas raízes na Magna Carta Inglesa, de 1215 ( embora não haja um consenso unânime na doutrina sobre tal origem remota). Há pensamento no sentido de que antes mesmo do surgimento de tal diploma legal o princípio já existia entre os povos, ainda que não positivado. O fato é tal postulado fora cunhado em 1215 e disso resta pouca ou nenhuma dúvida. O cerne dele foi a restrição do poder do monarca, detentor do poder político, mais conhecido como João Sem Terra. Detentor do poder político, porém, carecedor do poder econômico, já que economia e política não caminhavam lado a lado nessa época feudal na doce e temida Inglaterra. Mas a ideia básica era a limitação do poder. Esse o alicerce do princípio da legalidade. Suas bases. Seu corpo.
Aclarado na célebre locução latina: " nullum crimen nulla pena sine lege". Noutras palavras: não há crime e nem pena sem lei que os defina! Importado para o Brasil esse princípio esteve presente em todas as nossas Constituições, ostentando previsão constitucional e infraconstitucional ( Código Penal).
Base legal: art. 1º do Código Penal e art. 5º,XL, CRFB/88. Um ponto interessante que desde já nos compete ressaltar é o de que o legislador ao estatuir o princípio da legalidade não o faz com o rubrica legalidade e sim anterioridade da lei penal. Anterioridade seria o corpo. Legalidade seria a sua alma. Na função de melhor assegurar uma garantia do cidadão face ao Estado essa lei deve ser anterior ao fato. logo, a anterioridade dá eficácia a própria legalidade. Propicia segurança jurídica para a sociedade, por isso, a anterioridade surge como o marco para que o cidadão saiba, de antemão, se a sua conduta é violadora de bens jurídicos ou um indiferente penal, sob pena de criarmos tribunais de exceção para fatos específicos e, com isso, fulminarmos o Estado Democrático de Direito.
Na atualidade tal locução latina já esboça um acréscimo: nullum crimen sine lege praevia. É o retrato do princípio da anterioridade da lei penal incorporado ao princípio da legalidade. São as duas faces de uma mesma moeda. Conseqüentemente, haverá uma impossibilidade de se descrever uma conduta criminosa apenada por um ato normativo que não seja uma lei em sentido formal ou em sentido estrito. Repudia-se a criação de delitos por meio de medidas provisórias, decretos, leis delegadas, bem como de atos administrativos, portarias, resoluções, etc. A concretude afeta às condutas delituosas se dá via lei. Trata-se de radicalismo necessário ao bom convívio social.
O positivismo entende que a realidade humana é construída pela vontade humana, seu motor propulsor. No estudo etimológico da palavra positivismo detectamos como o significado o posto, o decido pelo homem. Cria-se a lei pela vontade do legislador e dá-se poder a vontade para que ela se efetive na prática. A força que advém da lei remonta a Hobbes, que mais que a idéia de justiça defendia o slogan da segurança. Em uma balança privilegia uma justiça incerta e uma segurança, ainda que injusta.
1.4.6) Princípio da Imprescritibilidade.
O Estado, em algumas situações, pode abster-se do seu direito de punir o cidadão graças ao decurso de certo lapso temporal. A isso se dá o nome de prescrição. A renúncia ao direito de punir o infrator é faceta de uma política criminal criada pelo próprio Estado. Tal não ocorre nos crimes encampados pelo Estatuto de Roma. Por sua especial gravidade tais crimes são imprescritíveis. Assim, ainda que se passem cinqüenta anos o indivíduo ainda se encontra sobre a mira do Tribunal Penal Internacional caso se encontre nas situações criminosas por ele tipificado. Aqui o fator segurança jurídica é a garantia da ordem internacional e uma vez violada não é tal fato não é esquecido pelo tempo.
1.5) Crimes de competência do Tribunal Penal Internacional.
O Tribunal Penal Internacional guarda para si a competência para fins de julgamento, ostentando as características de permanência e independência no que toca aos crimes de maior gravidade que repercutem na sociedade internacional manchando de sangue e dor a humanidade.
Ditos crimes, imprescritíveis que são, podem ser elencados da seguinte forma: 1) crime de genocídio; 2) crimes contra a humanidade; 3) crimes de guerra; 4) crimes de agressão. No que tange ao instituto ora versado (competência) aplicável que é aos referidos crimes há que se dizer que a mesma só remanesce no que toca àquelas violações praticadas em época anterior a entrada em vigência do Estatuto de Roma. Assim, após a entrada em vigor do respectivo Estatuto estará o Tribunal Penal Internacional apto ao julgamento dos crimes que ocorrerem nele.
É importante ressaltar no que toca a questão da imputabilidade penal, também denominada capacidade penal que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, na forma do disposto no art. 26 do Estatuto, alcança somente os seres humanos maiores de dezoito anos de idade, em plena compatibilidade com que a apregoa a Constituição da República Federativa do Brasil. As regras penais e procedimentais encampadas no Estatuto de Roma, interpretadas apressadamente, podem levar a falsa interpretação de estarem em dissonância com o texto constitucional brasileiro. Todavia, dita incompatibilidade é meramente aparente no que concerne à entrega de nacionais ao Tribunal; a instituição da pena de prisão perpétua; a questão das imunidades em geral e as relativas ao foro por prerrogativa de função; a questão da reserva legal e, por fim, a questão no toca a coisa julgada.
Cumpre dizer que a aparente antinomia meramente aparecem desaparecem logo que se utiliza de um método dialógico (diálogo da fontes) para a sua eficaz superação.
Há que se argumentar que a assinatura brasileira lançada ao tratado que instituiu o Tribunal Penal internacional desabrochou a necessidade de análise de validade de sua ratificação, considerando-se os conflitos meramente aparentes de normas do Estatuto de Roma e a Constituição da República Federativa Brasileira.
Passemos, pois, a análise da questão de sua ratificação e o direito interno brasileiro. Trata-se a ratificação de forma de expressão de consentimento sucessiva à assinatura do tratado, ou seja, denota a manifestação de assentimento da autoridade incumbida para tanto, revelando, pois, externamente a vontade de obrigar-se em seara internacional. Confere assim uma maior segurança no que tange as relações internacionais, propiciando, dessa feita, um maior controle democrático ao Estado visto sob o aspecto interno e externo.
As nuances preliminares a serem destacadas concernem à entrega de nacionais pátrios ao Tribunal Penal Internacional, disposição essa tipificada no art. 89, parágrafo primeiro, do Estatuto de Roma; segundo a qual o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de um cidadão a qualquer Estado em cujo território a mesma se encontre, e solicitar a cooperação estatal no que toca a detenção e entrega da pessoa em tela, sendo, pois obrigatório aos Estados-partes o dever de prestar satisfação ao Tribunal em face de tais pedidos, em consonância com o Estatuto bem como com o seu direito interno.
Há que se atentar que o proibido pela Constituição da República Federativa do Brasil é a extradição de brasileiro natos e não a entrega. Entrega não se confunde com extradição. A entrega de uma pessoa (qualquer que seja a sua origem: nacionalidade e lugar onde resida) ao Tribunal Penal Internacional consiste ao mero repasse do indivíduo a uma jurisdição estrangeira competente para julgá-lo e puni-lo, se necessário for. Em outras palavras: submete-se o acusado ou condenado a própria justiça, ainda que sob os auspício de uma instância internacional.
Resta consagrado no texto constitucional brasileiro, nas disposições de seu art. 5º, LI e LII, que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”; e também que” não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. Tais dispositivos constituem direitos fundamentais do países, constituem, pois, cláusulas pétreas e não podem ser modificados por legislação infraconstitucional face ao seu elevado grau de estabilidade dentro do sistema.
Já o instituto da extradição, ensina-nos Jacob Dolinger: “é o processo pelo qual um Estado atende ao pedido de outro Estado, remetendo-lhe pessoa processada no país solicitante por crime punido na legislação de ambos os países, não se extraditando, via de regra, nacional do país solicitado”. (DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral, 6 ed. Ampl. E atualz. Rio de Janeiro. Renovar, 2001. p. 238).
Por tais razões é que o Estatuto de Roma, levando em conta disposições semelhantes de vários textos constitucionais modernos faz diferença ontológica entre os termos entrega e extradição. Nas precisas palavras de Chapus de Medeiros: “a diferença fundamental consiste em ser o Tribunal uma instituição criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de forma justa, independente e imparcial. Na condição de órgão internacional, que visa realizar o bem estar da comunidade mundial, porque reprime crimes contra o próprio Direito Internacional, a entrega do Tribunal não pode ser comparada à extradição”. (CHAPUZ de Medeiros, Antônio Paulo. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. In: O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/ Coordenação de Publicações, 2000. Série Parlamentar, n.110, p.209 – 215).
Daí estar correta a assertiva de que o ato de entrega é aquele realizado pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diversamente do instituto da extradição, que é feita de um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade em relação a indivíduo nesse último processado ou condenado e lá refugiado. Em outras palavras: a extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diversamente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, em que a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.
Já no que concerne a pena de prisão perpétua, outro instituto de grande celeuma por trazer em seu bojo aparente antinomia entre a Lei Maior do pais e o disposto no Estatuto de Roma.
Dispõe o Tratado de Roma em seu art. 77, b: se o crime for extremamente grave e considerando as circunstancias pessoais do condenado caberá prisão perpétua. Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XLVII: “Não haverá penas: de caráter perpétuo”.
Vale ressaltar que a respectiva previsão constitucional pátria nem mesmo pode ser alterada por emenda constitucional, tendo em vista trata-se de cláusula pétrea, direito e garantia fundamental do indivíduo. E já que o Estatuto de Roma não admite ratificação, assinatura e adesão com reservas pelos países o problema parece insolúvel. Mas afirmamos: tal conflito é meramente aparente e não real.
A origem da regra esculpida pelo Tribunal Penal Internacional descende aos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, onde se estabeleceu a pena de morte, tendo continuidade aos Tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda, que previsão não a pena de morte, mas a pena de prisão perpétua, em uma clara gradação da pena de morte dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio. Com um rigor ainda menor (gradação), chega-se ao Tribunal Penal Internacional onde a pena de prisão perpétua ficou restrita a crimes de extrema gravidade, e ainda assim com a possibilidade de revisão decorridos 25 anos, nos termos do art. 110 do Tratado de Roma.
Passemos, pois, o estudo dos crimes em espécie.
1.5.1) Crime de genocídio.
Sem qualquer dúvida o crime de genocídio destacou-se no cenário mundial como a problemática mais debatida, sobretudo, no período pós Segunda Guerra, fator esse que desencadeou a edição da Resolução 260 A (III), da Assembléia Geral das Nações Unidas que gerou a adoção da Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do crime de genocídio (em vigor em 12 de janeiro de 1951), restando claro o entendimento de ser o genocídio alçado a categoria de crime internacional e, sem sobra de dúvidas, a mais grave espécie de crime contra a humanidade.
Na forma esculpida pelo art. 2º dessa Convenção, compreende-se por genocídio quaisquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) assassinato de membros do grupo; b) dano grave à integridade física ou mental dos membros do grupo; c) submissão intencional dos membros do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física, total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.
O homem é um animal racional e através da razão ele quer dominar todos os setores de sua vida, com necessidade de compreender e explicas suas próprias fases. O seu aparato intelectual sempre fica aquém de sua mais rica realidade.
Há imprecisão no conceito de dignidade humana, que é vidente, mas gigante em sua capacidade de descrição pelo homem. Cotejando: o Direito Natural deve procurar enxergar as situações fáticas do cotidiano, derivadas de bens e de pessoas titulares ou não de direitos, tais como o direito a vida, que é um direito natural e que pré-existe ao próprio Estado. O Estado da natureza compreende o contexto social e individual. O ser humano isolado, nem o índio sexta-feira. Até Adão necessitou do companheirismo de Eva.
O Direito positivo é fundamental para o contexto social, mas não pode ser interpretado sem a análise do Direito Natural, que são direitos prévios a própria existência formal da lei e do Estado. O genocídio é, pois, a forma mais vilipendiadora de ultraje a dignidade do homem fazendo tabula rasa aos postulados do Direito Nacional e desrespeitando o direito à vida em seu grau máximo.
Genocídio (por vezes designado por limpeza étnica), outrossim, definido como o assassinato deliberado de pessoas motivado por desigualdades étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, no mais das vezes, políticas. O genocídio pode se referir igualmente a ações deliberadas cujo objetivo seja tão-somente a eliminação física de um grupo humano segundo as categorias já elencadas.
O termo genocídio foi criado por Raphael Lemkin, um judeu Polaco, em 1944, juntando a raiz grega génos (família, tribo ou raça) e caedere (latim – matar).
Com o advento do genocídio dos Judeus pelo regime nazista, o Holocausto, Lemkin fez campanha pela criação de leis internacionais, que definissem e punissem o genocídio. Esta pretensão tornou-se realidade em 1951, com a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio.
A prática do crime de genocídio é tão antiga quanto à própria humanidade, e chega a se confundir com ela. A idéia de exterminar um grupo diferente é quase que inerente à condição humana, sendo muitas vezes reflexo de seu mais profundo egoísmo. Apesar de toda a proteção que vem sendo dada à pessoa humana em nível internacional, a categorização da humanidade como algo unitário ainda não é possível e pode se dizer que a história do genocídio é a história da intolerância contra a diversidade humana. A prática do genocídio ocorreu ao redor do mundo, em todos os períodos da história.
O crime de genocídio foi previsto pela Convenção da ONU, aprovada em Paris, em 09 de dezembro de 1948, para entrar em vigor em 12 de janeiro de 1951, após a ratificação por 22 países. O Brasil a ratificou em 15 de abril do ano seguinte, promulgando-a através do decreto n. 30.822, de 06 de maio desse mesmo ano.
Com fonte nesse tratado e ainda sob os efeitos do Holocausto, foi editada, no Brasil, a Lei n. 2889, de 1º de outubro de 1956, definindo o crime de genocídio como o comportamento com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Esse diploma não considerou o genocídio como crime político, para efeito de extradição.
A lei 8.072, de 25 de julho de 1990 (lei dos Crimes Hediondos), inspirada no inciso XLIII do art. 5º da Constituição da república Federativa do Brasil de 1988, considerou o genocídio crime hediondo, ainda que apenas tentado, sendo, pois, insuscetível de anistia, graça ou indulto, cumprindo o réu a pena, segundo a redação original (posteriormente alterada pela lei 11.464/ 2007), integralmente em regime fechado.
Vale ressaltar que embora tenha aderido ao Estatuto de Roma o Uruguai não previu o crime de genocídio em sua legislação interna. Todavia, através da lei 18.026 o país firmou uma cooperação com a Corte Internacional em matéria de genocídio devendo julgar tais crimes quando da ocorrência dos mesmos face ao princípio da complementaridade. Assim, o Uruguai através de convenção reconheceu o genocídio como crime de direito internacional, todavia, jamais o incorporou em seu direito interno. Reconhece a necessidade de sua tipificação mas nada foi feito até o presente momento.
Preleciona Oscar López Goldaracena: “ La Resolución 96 (1) de 11 de diciembre de 1946 ha declarado que el genocidio es un delito de derecho internacional condenado por el mundo civilizado, contrario al espíritu y a los fines de las Naciones Unidas. La Convención para la Prevención y la Sanción del Delito de Geonocídio, Resolución 260 A ( III), de 9 de diciembre de 1948, que entró en vigor el 12 de enero de 1951, entiende que se comete un genocidio cuando con la intención de destruir total o parcialmente a un grupo nacional, étnico, racial o religioso, se realiza cualquier acto de matanza de miembros del grupo; lesión a la integridad física o mental de los miembros del grupo; sometimiento intencional del grupo a condiciones de existencia que hayan de acarrear su destrucción física, total o parcial; medidas destinadas a impedir los nacimientos en el seno del grupo y traslado por fuerza de niños del grupo u otro grupo…La Convención para la Prevención y la Sanción del Delito de Genocídio obliga a los Estados a adoptar las medidas legislativas necesarias para asegurar la aplicación de las disposiociones de la presente Convención y especialmente a establecer sanciones penales eficaces para castigar a las personas culpables de genocidio. Uruguay ratificó dicha Convención por ley 13.482 de 30 de junio de 1966, pero jamás incorporó el crimen del genocidio al derecho interno. La tipificación de la figura en nuestro orden jurídico es un imperativo del derecho internacional por las obligaciones que dimanan del derecho internacional general ( jus cogen) y de la propia Convención”. ( GODARACENA, Oscar López, Cooperación Con La Corte Penal Internacional. Montevideo. Uruguay. 1ª Edición. FCU, 2008.).
No Brasil a lei a tratar do assunto é a lei 2889, de 1956, que preceitua de antemão em seu art. 1º: “Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; será punido: com penas do art. 121, parágrafo 2º, do Código Penal, no caso da letra a; com as penas do art. 129, parágrafo 2º, no caso da letra b; com as penas do art. 270, no caso da letra c; com as penas do art. 125, no caso da letra d; com as penas do art. 148, nos casos da letra e”.
Assim, de braços dados com o art. 1º da lei 8072/90, o crime de genocídio é tido como crime hediondo, seja na sua forma consumada ou tentada, e consiste na destruição, total ou parcial, de grupo, nacional, étnico, racial ou religioso; de forma que não se pune o crime na modalidade culposa, tendo em vista o próprio art. 1º que faz menção em seu corpo na destruição intencional, daí se defluindo, igualmente, o dolo como elemento subjetivo do tipo penal.
Para fins de caracterização do crime de genocídio em solo brasileiro é suficiente que o sujeito ativo pratique qualquer das condutas especificadas no tipo contra uma única pessoa do grupo, desde que patente a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Assim, a acaso o individuo pratique qualquer das condutas descritas contra mais de uma pessoa, ser-lhe a aplicado o concurso de crimes.
É cediço que as expressões “grupo nacional, étnico, racial ou religioso” configuram um conjunto de pessoas ligadas pela proximidade e que reunidas formam um todo unitário, que possui características, traços, interesses e objetivos comuns. Pode ser visto sob a ótica nacional (como um grupo pertencente a uma determinada nação), étnica (como um grupo com uma mesma cultura, língua, origem e história, racial (como um grupo relativo às características físicas) e mesmo religiosa (como um grupo que adota a mesma crença).
Faremos, pois, uma análise detalhada da legislação brasileira acerca do tema para, posteriormente, reportá-lo ao cenário internacional a que se insere no Tribunal Penal Internacional.
Elenca-se como sujeito ativo do crime de genocídio qualquer pessoa, sem qualquer qualificação especial para tanto. Já o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, desde que ligada a certo grupo nacional, étnico, racial ou religioso. No que toca à conduta elencada na alínea d, em casos específicos de aborto, o sujeito passivo também se cataloga como o feto ou o embrião.
Todavia, quando o sujeito ativo realizar especificamente a conduta de matar em solo brasileiro (pura e simplesmente) membros do grupo nacional, étnico racial ou religioso, será penalizado com as penas inerentes ao crime de homicídio qualificado, ou seja, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão.
Situação diversa ocorre quando o sujeito ativo com a sua ação intentar a conduta de lesionar, ou seja, de causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, seja ele nacional, étnico, racial ou religioso; será, pois, punido com as penas relativas à lesão corporal de natureza gravíssima, ou seja, de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão. Já, quando o sujeito ativo praticar a conduta de submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial, será punido com as penas relativas ao crime de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia.
No que concerne a conduta do sujeito ativo em adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo, o mesmo será punido com as penas relativas ao crime de aborto provocado por terceiro; qual seja de 3 (três) a 10 (dez) anos de reclusão. O que não se confunde com a conduta do sujeito ativo em efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo, fato esse punido com as penas relativas ao crime de seqüestro e cárcere privado, ou seja, de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão.
Importante se faz ressaltar que o genocídio perpetrado por brasileiro ou por agente que tenha domicílio no Brasil fica sujeito a legislação brasileira, ainda que cometido no exterior.
No que concerne ao instituto da competência é necessário que se diga a competência no que toca ao processamento e julgamento do crime de genocídio varia de acordo com a conduta perpetrada pelo agente. Configurado o crime doloso contra a vida, a competência estará afeta ao Tribunal do Júri; sendo, pois, a competência do juízo singular estadual residual. Em havendo grave violação de direitos humanos a competência poderá ser redirecionada para a justiça federal, assim também ocorrerá quando o crime de genocídio visar ao extermínio de comunidades indígenas, podendo a pena ser agravada de um terço se a vítima de crime contra a pessoa, patrimônio ou costume for um índio, independentemente do fato do índio ser ligado a comunidade indígena ou não.
A lei nacional brasileira ainda possui a seguinte tipificação: “Art. 2º: Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para a prática dos crimes mencionados no artigo anterior: Pena: Metade da cominada aos crimes ali previstos”.
Assim, a associação para o cometimento de genocídio configura um tipo penal similar ao de quadrilha ou bando, tipificado no. Art. 288 do Código Penal Brasileiro, todavia, constituindo uma forma específica do mesmo. Dessa forma, se mais de três pessoas se associarem para fins de cometimento de qualquer outro crime, serão penalizadas pelas sanções inerentes ao crime de quadrilha ou bando; o que não se perfaz com a associação para o cometimento do crime de genocídio. Aqui não se pune a forma culposa exigindo-se como elemento subjetivo o dolo. Não se exige qualquer qualificação especial do sujeito ativo do crime de associação para o cometimento de genocídio. Já o sujeito passivo do mesmo pode ser qualquer pessoa, desde que ligada a certo grupo nacional, étnico, racial ou religioso, não obstando a que venha a ser a própria humanidade.
A lei nacional brasileira ainda tipifica a conduta de incitação ao crime em comento. Dispõe em seu art. 3º: “Incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º. Pena: Metade das penas ali cominadas. Parágrafo 1º: A pena pelo crime de incitação será a mesma do crime incitado, se este se consumar. Parágrafo 2º: A pena será aumentada de 1/3 (um terço), quando a incitação for cometida pela imprensa.
Trata-se de um tipo penal semelhante ao de incitação ao crime, tipificado no art. 286 do Código Penal Brasileiro. Todavia, previsto em forma específica. Assim, se um indivíduo instiga outro para o cometimento de qualquer outro crime, sua conduta se amoldará ao tipo do art. 286 do Código Penal; salvo se instigação for para fins de cometimento do crime de genocídio. Não há que se falar em punição culposa desse tipo de crime, restando, pois, o dolo como elemento subjetivo do crime; dolo este de destruição étnica e incitação para tanto. Instigação essa direta e pública.
Importante destacar que o sujeito ativo do crime de incitação para o cometimento do crime de genocídio poderá ser qualquer mortal. A lei não exige qualquer qualificação para tanto. Já o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa ofendida, desde que ligada certo grupo com as características acima descritas, ou até a humanidade.
O Brasil ainda tipifica a tentativa de genocídio da seguinte forma: “Art. 5º: Será punida com 2/3 (dois terços) das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nessa lei”.
Assim, por se tratar de um tipo penal previsto em lei especial aplica-se o princípio da especialidade, de molde a não se aplicar o art. 14, parágrafo único do Código Penal Brasileiro.
Por fim, a novel legislação brasileira é taxativa ao determinar que os crimes nela previstos não sejam considerados crimes políticos para o fim de extração. Preceitua em seu art. 6º: “os crimes de que trata essa lei não serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição”.
Isso por que a Constituição da República Federativa do Brasil apregoa em seu art. 5º, LII que não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político. Trata-se de um direito e garantia fundamental do indivíduo.
Feita, pois, uma análise detalhada da legislação brasileira acerca do tema nos reportamos ao cenário internacional. Vejamos: A Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do crime de genocídio foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 2, de 11 de abril de 1951, e promulgada pelo Decreto 30.822, de 6 de maio de 1952.
1.5.2) Crimes contra a humanidade.
Tal postulado “crimes contra a humanidade” consagra quaisquer atrocidades e supressões de Direitos Humanos cominados na terra em cujo princípio da retribuição deságua em uma jurisdição global ou universal.
Antes de nos determos ao estudo específico dos referidos crimes passemos ao que nos reporta o Estatuto de Roma sobre o assunto. O rol dos crimes é extenso o que equivale a dizer que não houve burla ao princípio da tipicidade que fora respeitado em sua integralidade. A base legal situa-se no capítulo II do mencionado diploma que assim dispõe:
Dos crimes contra a humanidade.
Crime contra a humanidade de homicídio: Art. 24. Matar alguém. Pena: Reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos; Crime contra a humanidade de extermínio: Art. 25. Matar alguém, num contexto de extermínio em massa, com o fim de causar a destruição no todo ou em parte de população civil, inclusive mediante privação de meios necessários â sua subsistência ou imposição de condições de vida adversas. Pena: reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) anos; Crime contra a humanidade de escravidão: Art. 26: Exercer sobre alguém quaisquer atos próprios do direito de propriedade, tais como comprar, vender, emprestar ou dar em troca, ou quaisquer outros atos que as reduzam â condição análoga a de escravo. Pena: reclusão de 6 (seis) a 12 (doze) anos; Crime contra a humanidade de deportação ou deslocamento forçado: Art. 27: promover, sem qualquer motivo reconhecido pelo direito internacional, mediante violência, ameaça ou qualquer outra forma de coação, a deportação ou o deslocamento de pessoas, do local em que se encontrem legalmente. Pena: reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos; Crime contra a humanidade de prisão ou restrição de liberdade: Art. 28: prender, ou submeter alguém a grave restrição da liberdade física, infringindo normas do direito internacional. Pena: reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos; Crime contra a humanidade de tortura e tratamentos degradantes, cruéis ou desumanos: Art. 29: submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental. Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Parágrafos: 1º: Não constituem tortura a dor ou sofrimento inerente â execução de sanções legítimas – 2º: A pena aumenta-se de um a dois terços se da conduta resultar incapacidade permanente para o trabalho, deformidade permanente, enfermidade incurável, ou debilidade, perda ou inutilizarão de membro, sentido ou função. - 3º: a pena será duplicada se resultar morte; Crime contra a humanidade de violência sexual: Art. 30: constranger alguém, direta ou indiretamente, mediante violência ou grave ameaça, à conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Pena: reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Parágrafos: 1º: A pena aumenta-se de um a dois terços se da conduta resultar incapacidade permanente para o trabalho, deformidade permanente, enfermidade incurável, ou debilidade, perda ou inutilizarão de membro, sentido ou função. – 2º: a pena será duplicada se resultar morte...Enfim...Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; Desaparecimento forçado de pessoas; Crime de apartheid; bem como outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental
Historicamente falando, os crimes contra a humanidade estão atrelados ao massacre dos turcos em face dos armênios, datados da Primeira Guerra Mundial, mais conhecidos mundialmente falando como um crime da Turquia contra a humanidade.
Ensina-nos Valério de Oliveira Mazzuoli: “Foi somente no período pós-Segunda Guerra que se voltou a cotejar de tais crimes, em virtude das inúmeras atrocidades cometidas pelo Estado em que se converteu a Alemanha Nazista no Holocausto. Como destaca Alessandra Palma, a elaboração dessa nova categoria se fazia necessária em virtude da impossibilidade de reconduzir tais crimes à categoria dos crimes de guerra e contra a paz, já conhecidos. A definição em plano convencional de tais crimes foi dada pelo art. 6º do Estatuto de Nuremberg, seguido pelo Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Tóquio. Havia, entretanto, um limite relevante no conceito de crimes contra a humanidade: para serem considerados como tais, esses deveriam ser conexos aos crimes de guerra e contra a paz, o que os tornava complementares em relação às outras duas figuras criminosas e não eram considerados suscetíveis de uma relevância internacional autônoma. (MAZZUOLI; Valério de Oliveira, Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p.59, Revista dos Tribunais.)
A consagração de tal tipo “crimes contra a humanidade” veio a lume no art. 7º, parágrafo primeiro, do Estatuto de Roma. São catalogados como crimes contra a humanidade atos cometidos frente a um ataque em face de população civil, quais sejam homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de população, prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional, tortura, agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável, perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no Direito Internacional relacionados com qualquer um dos atos já mencionados ou qualquer crime da competência do Tribunal, desaparecimento forçado de pessoas, crime de apartheid e demais atos desumanos análogos aos acima descritos.
1.5.2.1) Discriminaçao Racial.
Outrossim, o Brasil assinou a CONVENÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, adotada pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, estando em vigência desde 1969.
J. A. Lindgren Alves destaca que, ao final dos anos 40 e na década de 50, “o grande incentivo à adoção de dispositivos antidiscriminatórios foi a lembrança do holocausto judeu sob os regimes nazifacistas”; já nos anos 60, aduz, “seu principal motor foi o grande movimento de emancipação das antigas colônias européias”.
Com ênfase, ainda, destaca que “o ingresso de dezessete novos países africanos nas Nações Unidas em 1960, a realização da Primeira Conferência de Cúpula dos Países Não-Alinhados, em Belgrado, em 1961, assim como o ressurgimento de atividades nazifascistas na Europa e as preocupações ocidentais com o anti-semitismo compuseram o panorama de influências que, com graus variados de eficácia, reorientaram o estabelecimento de normas internacionais de direitos humanos, atribuindo prioridade à erradicação do racismo”[6].
No seu preâmbulo,dita Convenção invoca que “todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação e contra qualquer incitamento à discriminação”; afirma “a necessidade de eliminar a discriminação racial no mundo, em todas as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da pessoa humana”; também deixa estabelecido que “a doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum”. Com esses contornos, reafirma que “a discriminação entre as pessoas por motivo de raça, cor ou origem étnica é um obstáculo às relações amistosas e pacíficas entre as nações e é capaz de perturbar a paz e a segurança entre os povos e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado, até dentro de um mesmo Estado”.
Em apertada síntese, J. A. Lindgren Alves acentua que a convenção obriga os Estados-membros a:
“- buscar eliminar a discriminação racial e promover o entendimento entre todas as raças, fazendo com que todas as autoridades públicas atuem dessa maneira;
- abolir quaisquer leis ou regulamentos que efetivamente perpetuem a discriminação racial;
- condenar toda propaganda baseada em teorias de superioridade racial ou orientada para promover ódio ou discriminação racial;
- adotar medidas para erradicar toda incitação à discriminação;
- garantir o direito à igualdade perante a lei para todos, sem distinção de raça, cor ou origem nacional ou étnica;
- assegurar proteção e recursos legais contra atos de discriminação racial que violem direitos humanos;
- adotar medidas especialmente nas áreas de educação, cultura e informação, com vistas a combater o preconceito”[7].
O mecanismo de controle e supervisão é feito pelo Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, semelhante ao Comitê de Direitos Humanos instituído pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Compete ao Comitê examinar as petições individuais (denunciando violação de direito previsto na Convenção contra a Discriminação Racial), os relatórios encaminhados pelos Estados-membros e as comunicações interestatais.
Frise-se: A decisão do Comitê, ressalte-se, é similar à decisão do Comitê de Direitos Humanos, ou seja, não tem força jurídica obrigatória, vinculante; todavia, o Comitê emite recomendações, após análise do caso, cabendo ao Estado informar as medidas adotadas.
A Constituição Federal de 1988 deu efetivo destaque ao princípio da igualdade e à não-discriminação.
Com efeito, no artigo 3.º, inciso I, o legislador constituinte fez constar, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, enfatizando, no inciso III, a necessidade de erradicar a pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. No inciso IV, em seguida, constou como objetivo “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, dando contornos absolutos ao tema, ou seja, deixando destacadas as duas metas a serem atingidas: a promoção da igualdade e o combate à discriminação.
Flávia Piovesan, a esse respeito, expõe que “na ótica contemporânea, a concretização do direito à igualdade implica na implementação dessas duas estratégias, que não podem ser dissociadas. Isto é, hoje o combate à discriminação torna-se insuficiente se não se verificam medidas voltadas à promoção da igualdade. Por sua vez, a promoção da igualdade, por si só, mostra-se insuficiente se não se verificam políticas de combate à discriminação”[8].
No artigo 5.º, em seguida, encontramos o direito à igualdade relacionado como direito fundamental. Nesse tema, é necessário lembrar, a uniformidade de tratamento impõe, por vezes, distinções no tratamento jurídico, pois a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.
Logo, é lição colhida de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “...distinção não é discriminação, na medida em que a diferenciação ‘compensa’ a desigualdade e por isso serve a uma finalidade de igualização, como ensinou San Tiago Dantas, quando a diferenciação visa ao ‘reajustamento proporcional de situações desiguais’ ...”[9].
É importante enfatizar que, em tema de discriminação, o princípio da igualdade somente será atendido com o tratamento diferenciado, a adoção de medidas especiais de proteção às pessoas ou aos grupos sujeitos à discriminação, ou seja, com o tratamento desigual aos grupos em desigualdade, pois, além de ser possível atingir-se o equilíbrio, a isonomia, tal política compensatória, como já enfatizamos antes, tem o condão de aliviar, resgatar o passado discriminatório de que foram alvo essas pessoas ou grupos.
No que tange ao combate à discriminação, a Carta Constitucional, no artigo 5.º, inciso XLI, estabelece que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, portanto, qualquer discriminação que constitua atentado ou lesão ao princípio da igualdade. No inciso XLII, em seguida, dispõe que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
1.5.2.2) Tortura.
Em atenção ao comando constitucional, foi editada a Lei n. 7.716, de 5.1.1989, na qual foram definidos os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, diploma esse que mereceu alteração pela Lei n. 9.459, de 13.5.1997, que ampliou o objeto de tutela, estabelecendo a punição dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
O primeiro registro que tem que ser feito é o de que até o advento da lei especifica da tortura, lei que define as modalidades tipicas do crime de tortura, até então, havia no direito penal brasileiro,como figura típica autônoma do crime de tortura, a do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA).
Só havia no Direito Penal Brasileiro um tipo incriminador definindo o crime de tortura que era o antigo 233 do ECA, cuja constitucionalidade era duvidosa.
O plenário do Supremo Tribunal Federal, eu apertada votação, por 6X5 votos, apenas um voto de diferença, reconheceu a constitucionalidade desse artigo, mas 5 dos Ministros votaram pela inconstitucionalidade, ao argumento de que o art. 233 do ECA não definia crime, fazendo apenas referencia a tortura sem defini-la. Mas, na atualidade, essa discussão está superada porque a lei 9455/97 revogou expressamente o art. 233 do ECA pelo seu art. 4.
Então anteriormente a vigência da lei 9455/97 só vigia o art. 233 do ECA, sendo sujeito passivo daquele crime criança ou adolescente. Agora na vigência da lei 9455/97 é nela que estão definidas as modalidades típicas da tortura.
A Constituição Brasileira, no artigo 1.º, inciso III, estabelece que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Esse princípio, que orienta todo o sistema, deixa bem clara a opção do legislador constituinte de absoluto respeito para com a pessoa e seus predicados, entre esses, a liberdade e a integridade física, valores fundamentais que se encontram abrigados em seu núcleo, exatamente por se tratar de traços fundamentais e indissociáveis da dignidade da pessoa, e que são violados por ocasião da prática de tortura.
Não bastante isso, a Carta Constitucional prevê, no artigo 5.º, inciso III, que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, também prevendo, no inciso XLIII, que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Em atenção ao comando constitucional, houve a edição da Lei n. 9.455, de 7.4.1997, que define os crimes de tortura, e tal providência atendeu o artigo 4.º da Convenção contra a Tortura, no qual está estabelecido que “cada Estado-parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura”.
A Lei n. 9.455/97, que define os crimes de tortura e dá outras providências, constitui o principal instrumento de combate à tortura.
O artigo 1.º dessa lei define o crime de tortura da seguinte forma:
“Art. 1.º. Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental;
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa.
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§ 1.º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2.º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos.”
Diferentemente do que a doutrina sugeria o legislador definiu a tortura como crime comum, ou seja, qualquer pessoa e não apenas o funcionário publico, pode ser sujeito ativo do crime de tortura, não há que se falar aqui em crime próprio porque o tipo incriminador não reclama, em regra, condição especial do sujeito ativo.
Essa é a primeira critica que a doutrina faz a lei 9455/97: o legislador definiu a tortura como crime comum.
Assim, como podemos observar na figura delitiva prevista no artigo 1.º, inciso I, trata-se de crime comum, podendo ser realizado por qualquer pessoa. Já a figura delitiva do artigo 1.º, inciso II, trata de crime próprio, cometido por quem possui autoridade, guarda ou vigilância sobre a vítima, todavia essa vinculação pode ser de caráter público ou privado, ou mesmo derivar de qualquer poder de fato do agente sobre a vítima. ALEJANDRO DEL TORO MARZAL apóia essa construção típica por entender que “a tortura deve ser castigada em si mesma e por si mesma, em razão de seus detestáveis métodos e por seus fins contrários à liberdade e à dignidade”.[10]
Há aqueles, todavia, que pensam diferente, entendendo que os crimes de tortura devam ser cunhados como crimes próprios, tendo como sujeito ativo o funcionário público ou outra pessoa no exercício de função pública. Nesse sentido, encontramos as opiniões de ALBERTO SILVA FRANCO, CRISTINA DE FREITAS CIRENZA e CLAYTON ALFREDO NUNES, bem como de VIVES ANTÓN: “O que dá substantivação ao delito é o abuso de poder vinculado ao atentado contra as garantias, penal e processual. Os fatos realizados por particulares não podem reunir esses dados característicos e, em qualquer caso, para seu castigo há uma larga série de figuras genéricas”.[11]
Embora haja opinião em sentido contrario, tem prevalecido a possibilidade de reconhecer concurso material entre tortura e homicídio qualificado pela tortura porque a tortura que qualifica o homicídio não se relaciona à tortura como crime autônomo.
Apesar das críticas, a Lei n. 9.455/97 veio preencher uma lacuna no direito brasileiro, uma vez que definiu os crimes de tortura, configurando um instrumento de real valia na tarefa de eliminar atos de tortura da vida nacional e na construção da dignidade da pessoa, princípio maior a orientar todo o sistema.
1.5.2.3) Crianças e Adolescentes.
Iremos agora detalhar os Direitos das Crianças e dos Adolescentes no Brasil no cenário Nacional e Internacional.
A Lei 8069/90 teve o condão de inovar materialmente o Direito Invanto-Juvenil em terras brasileiras encampando a doutrina da proteção integral em uma visão pós-moderna no sentido de que crianças e adolescentes, na condição peculiar de seres em desenvolvimento, gozam de per si de direitos condizentes com a especialidade que ostentam. A proteção é integral, pois, são sujeitos e não mero objeto de direitos.
O posto de objeto de direitos teve lugar no Código Menorista, já revogado.Tratava-se de um Código Penal do menor em que não havia qualquer direito catalogado, embora as sanções aos seus destinatários fossem as mais variadas possíveis.
A nova teoria, fundada na integral proteção dos direitos infanto-juvenis alicerçou-se jurídica e socialmente na Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças, aderida pela Assembléia –Geral das Nações Unidas, no dia 20.11.90. Não há que se falar em ressalvas brasileiras quanto ao texto já que o Brasil adotou-o em sua totalidade, o que o fez formalmente pelo Decreto 99.710, de 21.11.90, em ato contínuo ratificando-o pelo Congresso Nacional por força do Decreto Legislativo 28, de 14.09.90.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos ressalta que a criança, por ser uma pessoa em desenvolvimento, deverá ter privilégios quando se tratar do aspecto social, educação, trabalho, proteção, saúde, isto é, tem a finalidade de garantir-lhe crescimento saudável em todos os aspectos da vida.
Outro aspecto abordado pela Declaração é o de que a criança deve ter oportunidades e serviços por efeito de lei e de outros instrumentos, com a finalidade, também, de seu desenvolvimento integral.
A “Doutrina da Proteção Integral”, portanto, tem sua origem na própria Declaração, que a estabeleceu, e foi desenvolvida graças a instrumentos internacionais que lhe deram força e penetração.
Como já observado acima, a Convenção, em seu preâmbulo, cita expressamente os instrumentos internacionais que consolidaram a doutrina que afirma a obrigatoriedade de prover à criança uma proteção especial: a Declaração de Genebra, de 1924, no tema os Direitos da Criança; a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral em 20.11.1959; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (arts. 23 e 24); o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, (art.10); estatutos de agências especializadas e das organizações internacionais que defendem o bem-estar da criança.
Declara também, em seu preâmbulo, que “em todos os países do mundo existem crianças vivendo em condições excepcionalmente difíceis”. A Convenção recomendou, por meio de suas normas, a prioridade imediata para a infância. Este princípio tem, sem dúvida, caráter universal ao exigir proteção para as crianças, estando acima de ajustes econômicos, de dívidas dos países em desenvolvimento e outros problemas internos dos países signatários. Devem, pois, os mencionados países signatários dar prioridade à modificação de seus ordenamentos jurídicos nos termos da Convenção.
E a pergunta que não quer calar é a de qual momento essa proteção integral a vida é dada ao ser humano as luzes do Estatuto da Criança e do adolescente no Brasil e no mundo? Com a maestria que lhe é peculiar responde-nos Markus Samuel Leite Norat: “ Existem teorias divergentes que tratam do assunto, sendo duas as principais: A teoria concepcionista ( após a concepção) e a teoria natalista ( nascimento com vida). Nosso entendimento é o seguinte: O Estatuto da Criança e do Adolescente adotou a doutrina da proteção integral, que determina que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Quando trata dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, o ECA dispõe : A criança e o adolescente tem direito a proteção à vida, a saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, e para permitir o cumprimento deste, assegura, entre outros, o direito ao atendimento pré e perinatal para a gestante. Além disso, a lei 11.804/2008 disciplina o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido. Resta, evidenciado, a partir dos exemplos supramencionados, que o ECA determina direitos de proteção à vida desde o período em que o feto está dentro do útero, assim sendo, após a concepção”. ( NORAT; Marcus Samuel Leite. Direito para concursos. Edijur,2011).
O art. 29 da Convenção estabelece os rumos e os parâmetros a serem seguidos para a educação e formação plena da criança. Ele estabelece como a criança deve aprender a respeitar os direitos humanos, as liberdades fundamentais e os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas. Indica a diretriz a ser seguida pela criança tendo “vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e pessoas de origem indígena, além de consignar a importância de uma educação voltada para o respeito ao meio ambiente.
Outro ponto a ser destacado é que a Convenção estabeleceu a proteção aos Direitos da Criança. Foi criado o Comitê dos Direitos da Criança, e este seria um foro internacional para o intercâmbio de idéias, demonstrando os problemas que comprometem a vida de uma criança e, assim, haveria uma maior agilidade para resolvê-los, por meio da troca de idéias entre os participantes do Comitê. Organizações internacionais foram também convidadas a participar dos debates do Comitê. Assim sendo, sistemas como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) são organismos colaboradores, de acordo com o art. 45 da Convenção.
Por meio de tais informes, o Comitê tem a possibilidade de fomentar o interesse pelos direitos da criança, além de formular sugestões e recomendações, tanto aos Estados-Partes como à Assembléia Geral da ONU.
É importante que se diga que houve, em Nova Iorque, o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança nas Nações Unidas, organizado pela Convenção. Desse encontro resultou a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança. Esta foi aprovada por mais de 60 países, por intermédio de seus governos, e poderia ser considerada um instrumento de caráter moral muito importante.
Destacaremos alguns pontos fundamentais da proteção dos direitos da criança contidos em nosso ordenamento jurídico.
No art. 227 da CF de 1988 é declarado:
É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O Brasil teve várias Constituições e a atual é a única que inclui os interesses das crianças e dos adolescentes de maneira absoluta.
Ensina-nos Wilson Donizeti Liberati: “ O art. 5º do ECA regulamenta a última parte do art. 227 da CF, que visa proteger todas as crianças e adolescentes da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão e todos os atentados aos seus direitos, quer por ação ou omissão. Os mandamentos constitucional e estatutário tem sua fonte no 9º Princípio da Declaração dos Direitos da Criança, da ONU: A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de negligencia, crueldade e exploração. Não será objeto de tráfico, sob qualquer forma. A utilização do Direito pelas crianças e pelos adolescentes torna-se um projeto de educação para as novas gerações e um investimento social de autoproteção para o homem. Com essa lei civilizatória as crianças e jovens passam a ser sujeitos de direitos e deixam de ser objetos de medidas judiciais e procedimentos policiais, quando expostos aos efeitos da marginalização social decorrente da omissão da sociedade e do Poder Público, pela inexistência ou insuficiência das políticas sociais básicas”. ( LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Editora Malheiros, 2006).
Sem dúvida, dentro de suas limitações, a política brasileira tem em muitos aspectos se interessado na valorização dos direitos humanos e, em particular, nos direitos da infância e do adolescente.
O Programa Nacional de Direitos Humanos, apresentado em 1996, no que interessa à criança e ao adolescente, especificou metas para que houvesse a aplicação dos dispositivos normativos e para a atuação governamental.
1.5.2.4) Crimes sexuais.
Tais crimes encontram-se tipificados no Brasil na lei 12.015 de 7 de agosto de 2009.
O nosso estudo inicial faz-se pela digressão acerca do crime de estupro, com as modificações oriundas da lei 12.015 de 7 de agosto de 2009. Antes mesmo de sua publicação em 2009, o Código Penal, no tocante aos crimes contra a liberdade sexual já havia sofrido alteração pela lei 11.106 de 2005, que dentre outras coisas, teve o mérito de revogar alguns pontos mal explicados e, portanto, mal interpretados dentro do sistema.
A alteração substancial da lei 12.015/2009 teve por finalidade atingir o próprio título VI do Código Penal; ou seja, alterou a proteção ao próprio bem jurídico que, até então se cingia aos costumes. Os costumes: refletem os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina sociais. O que a lei penal se propõe tutelar, in subjecta matéria, é o interesse jurídico concernente à preservação do mínimo ético reclamado pela experiência social em torno dos fatos sociais.
O legislador se viu na responsabilidade de ampliar essa proteção, já que não era mais suficiente a proteção aos costumes de uma dada sociedade. Fez-se necessário que o mesmo olhasse para o homem como sujeito de direitos e deveres. Houve, pois, a substituição da nomenclatura crimes contra os costumes para crimes contra a dignidade sexual, fruto da mudança substancial ao próprio bem jurídico tutelado penalmente. Hoje a tutela se amplia para abarcar a dignidade e o desenvolvimento sexual, bem como da liberdade sexual.
Não se visa o estudo aqui pura e simplesmente a uma ponderação de uma dignidade mínima para relações sexuais e sim garantir-se a liberdade de opção de escolha dos parceiros em uma relação sexual, pois a liberdade de opção implica na própria liberdade de se desenvolver sexualmente e vice e versa.
Dissecando o artigo 13 do Código Penal iremos notar a total modificação de sua redação, tornando-a mais ampla. Isso por que em um passado não muito remoto havia no cenário jurídico-penal dois crimes; quais sejam: o estupro e o atentado violento ao pudor. Diante das muitas nuances e controvérsias do sistema jurídico o legislador se fez entender incorporando o artigo 214, do CP (que versava sobre o atentado violento ao pudor) ao artigo 213, do CP (que versava unicamente em sua redação original sobre o crime de estupro). Eram, pois, estanques as condutas de constranger e causar grave ameaça a mulher para manter com a mesma conjunção carnal e a figura distinta de constranger alguém a praticar atos libidinosos ou permitir tais práticas com esse mesmo alguém, mediante violência ou grave ameaça. Condutas estanques em tipos autônomos.
É importante frisar que a nova lei revogou o tipo do art. 214 do CP, todavia, não revogou o crime de atentado violento ao pudor. assim vêm se pronunciando a jurisprudência dos Tribunais Superiores Brasileiros. Quando houve a revogação do artigo 214 do CP vozes isoladas na doutrinas chegaram a sugerir que houvesse abolitio criminis, ou seja, que uma lei posterior deixou de considerar crime o que a lei anterior definia como sendo. Mas raciocinar assim seria uma falácia por quebrar-se de morte o princípio da continuidade normativo-típica, que rege todo o sistema jurídico. O que se deu foi um reles deslocamento da figura típica do artigo 214 do CP para o artigo 213 do CP.
O artigo 213 do CP inchou-se, ficou agigantado, tão-somente. Houve migração, movimento do tipo que saiu de um artigo para juntar-se a outro e não abolição do crime. Afinal, o rótulo (nomen iuris de atentado violento ao pudor para estupro) não muda a substancia das coisas (condutas praticadas). A conduta e a forma do artigo 214 do CP foram incorporadas pelo artigo 213 do CP. Não reside mais a nomenclatura do atentado violento ao pudor, mas a conduta restou intacta.
É cediço que o estupro é um crime praticado mediante violência ou grave ameaça e, em assim sendo, em havendo o consentimento da vítima não há que se cogitar na figura penal do estupro. Haverá, pois, uma violência física ou uma violência moral; mas violência haverá! Logo, incompatível vislumbrar o consentimento na violência ínsita ao tipo.
É importante que se registre a finalidade da violência praticada; qual seja a conjunção carnal ou ato libidinoso diverso da mesma. Assim, com o agigantamento da finalidade da violência num único tipo o crime de estupro que antes era dogmaticamente classificado como um crime próprio (que demandava uma qualidade especial do sujeito passivo; qual seja: mulher), agora, sofre modificação substancial para crime comum (podendo ser praticado contra qualquer pessoa: homem ou mulher). O termo inserido pela nova legislação, qual seja, alguém, engloba tanto o homem como a mulher.
Diga-se de passagem, que em um passado nem tão remoto assim apenas o homem poderia figurar como sujeito ativo do crime e como sujeito passivo do mesmo apenas a mulher; tendo em vista o tipo imperativo que obrigava a mulher a manter relação carnal com o seu parceiro. Contudo, com a alteração legislativa nos tempo de hoje a mulher poderá manter relação carnal com o homem e vice e versa; o que implica dizer que tanto um quanto o outro serão, pois, autores de estupro. Por mais paradoxal que isso possa parecer o homem hoje poderá ser o sujeito passivo do crime de estupro, ainda que por um machismo exagerado nunca se revele como tal!
Mas a história nos revela que as coisas não eram tão simples quanto pareciam ser. Visualize o leitor o seguinte caso concreto: uma mulher que coagisse o homem a com ela manter conjunção carnal. Até o advento da atual legislação sobre o tema o alcance penal era restrito tão-só para a mulher; já que a mesma era o único sujeito passivo daquele crime (vítima). Isso por que era inimaginável que na década de 40 uma mulher poderia constranger o homem a consigo manter uma relação carnal; o que não se revela condizente com a realidade atual. Veio o legislador com o novo diploma legal atender aos anseios de uma sociedade sufocada por injustiças.
O estupro protege a dignidade, liberdade e o desenvolvimento sexual. Isso implica que só haverá a tutela penal quando houver conjunção carnal ou mesmo a prática ou permissão da prática de ato libidinoso quando houver consentimento. Na estrutura do delito só haverá consumação de crime quando a vítima não consentir, vista a exigência estrutural de violência ou grave ameaça. Todavia, o fato de a vítima não consentir não implica em exigir da mesma a sua resistência permanente. A violência e a grave ameaça viciarão o consentimento, já que ninguém é obrigado a sacrificar a vida apenas para obter uma tutela penal.
Assim, o consentimento, inicialmente, é viciado em razão do emprego da violência física ou mesmo do emprego da grave ameaça. (violência moral). Não necessariamente a resistência perdurará durante todo ato sexual. Em havendo constrangimento pela violência ou grave ameaça que resulte em conjunção carnal com outrem o emprego da violência por si só já afasta a capacidade de resistência. Assim, consentimento e resistência são termos que não se confundem.
A interpretação da resistência deve se dar no seguinte sentido: a resistência deve ser apta e capaz a demonstrar a falta de consentimento, o que não significa que o sujeito necessariamente resista por dar a própria vida. Independentemente da resistência o crime de estupro restará consumado. Contudo, há casos verídicos em que por jogo de sedução a vítima resiste e, posteriormente vem a consentir na prática do ato. Não há que se falar aqui em crime de estupro. A resistência, boa parte das vezes, faz parte do jogo de sedução.
Depende da análise do caso concreto para que a resistência configure crime de estupro, sob pena de violação ao princípio constitucional da proporcionalidade em que se impõe pena grave a fato que não deveria merecer reprimenda penal. A resistência deve ser objetiva, apenas no sentido de a vítima negar-se a conjunção carnal.
Há que se observar que conjunção carnal, que não se confunde com resistência, limita-se tão-somente com a introdução do pênis na vagina da mulher. Já o ato libidinoso se configura como qualquer outro ato que esteja relacionado com a lascívia do agente. Assim, um beijo, um tatear ou mesmo um apalpar podem configurar-se em ato libidinoso, a depender do caso concreto, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade. Seria desarrazoado se imaginar que um beijo demorado levaria a uma pena por crime de estupro. Haveria, pois, desproporcionalidade entre a ação (beijar) e a sanção (pena). Deve-se observar até que ponto o bem jurídico foi violado.
Perpassando pelo estudo do artigo 213 do CP iremos verificar que, além de ter conjunção carnal, a vítima praticará ou permitirá que com ela se pratique outro ato libidinoso. Dessa forma, a vítima poderá ter uma posição dúplice no sentido criminológico: faz ou sofre a ação. Note o leitor a descrição típica: praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Assim, o sujeito passivo do crime poderá praticar ou mesmo permitir que o ato libidinoso seja praticado nele. Quando o pratica o faz sobre o seu próprio corpo ou de outrem. De maneira que há a possibilidade do sujeito ativo constranger a vítima a praticar o ato libidinoso no corpo do sujeito ativo. O exemplo crucial é quando o agente obriga a vítima a masturbá-lo ou mesmo a masturbar-se.
A dificuldade residirá no instante em que o agente constrange a mulher a praticar o ato libidinoso sobre o seu próprio corpo enquanto ele fica a contemplar aquela atividade sexual. restará configurado o crime de estupro nesse caso, mas o contrário não se mostra verdadeiro, ou seja, quando o agente constrange a vítima a contemplá-lo quando o mesmo se masturba não há que se falar em estupro, mas tão-só em constrangimento ilegal. O leitor deve se atentar para esse fato e para responder se há estupro deve se perguntar: de quem é a masturbação?
Se for do agente sádico não haverá estupro, se for da vítima sob os auspícios de constrangimento haverá. Muito embora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça venha exigindo o contato físico para a configuração do crime de estupro, nessa hipótese específica de masturbação da vítima ameaçada, a regra geral é excepcionada. O contato físico é exigido, mas quando o agente constrange a vítima a se masturba para o seu deleite haverá estupro, mesmo sem haver o contato físico.
Atente o leitor que o contato físico será imprescindível somente quando estivermos diante das figuras de ter, praticar ou permitir a conjunção carnal ou ato libidinoso, o que não se estende a vítima ter de praticar atos libidinosos sobre o seu próprio corpo.
Vamos nos debruçar agora sobre a ontologia do estupro. Até o advento da lei 12.15/2009 nós tínhamos no crime de estupro conjugações no seguinte sentido. A prática dos crimes dos artigos 213 e 214 c.c o art. 223, do Código Penal. Em outras palavras: o estupro qualificado, bem como o atentado violento ao pudor qualificado recebia as penas tipificadas no artigo 223 do CP. Com a publicação da lei 12.015/2009 houve, pois, uma alteração no tipo do artigo 213, bem como a revogação do artigo 223; ambos do Código Penal.
Na atualidade, o estudo do estupro, em suas raízes, buscou transcrever em seus parágrafos a forma qualificada, até então insculpida no artigo 223 do CP, embora não haja a reprodução do artigo integralmente falando. Assim, hoje o crime de estupro em sua forma qualificada está previsto em seu próprio tipo. Haverá a forma qualificada do crime de estupro quando da conduta do agente resultar: lesão grave ou a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos. Essa segunda hipótese é uma inovação legislativa, motivo pelo qual dissemos acima que o artigo 223 fora transportado, mas não reproduzido ipis literis no artigo 213 do CP.
O crime de estupro se consuma quando o sujeito introduz total ou parcialmente o pênis na cavidade vaginal do sujeito passivo ou ainda se consuma quando o agente pratica ou permite ato libidinoso diverso da conjunção carnal. A tentativa ocorrerá no momento que esse agente, por circunstancias alheia a sua vontade, não consegue nem manter a conjunção carnal e nem praticar ato de libidinagem ou mesmo a permitir que a vítima com ele pratique ato de libidinagem.
1.5.2.5) Índios.
Por fim, também é crime que lesa a humanidade a violação contra os direitos dos povos indígenas. De grande comoção foi o caso 7615, relativo à violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil, particularmente, da comunidade Yanomami, em 1980. Este caso se distingue dos demais por ser o primeiro caso submetido por organizações não governamentais de âmbito internacional contra o Brasil. Nesta denúncia, afirmaram que os direitos dessas populações à vida, à liberdade, à segurança, à saúde e bem-estar, à educação, ao reconhecimento da personalidade jurídica e à propriedade havia sido afrontados pelo Governo do Brasil.
Preleciona Flávia Piovesan: “ O povo Yanomami, com uma população de 10.000 a 12.000, viviam em terras que ocupavam o território do Estado do Amazonas e de Roraima. Devido ao plano do Governo de explorar economicamente a região, os indígenas estavam sendo impelidos a abandonarem suas terras. Diante desse quadro, no período entre 1979 e 1984 esforços foram empenhados para demarcar as terras dos Yanomamis. Em 1982, sob pressão internacional, o Governo brasileiro declarou interdição de uma área de Roraima e do Amazonas para os povos Yanomamis. Em 1984, expediu-se um decreto prevendo a definição do chamado “Parque dos Índios Yanomais”, que corresponderia ao território desses índios. Esses fatos, no entendimento dos peticionários implicaram a violação dos direitos fundamentais dos Yanomamis, pois a devastação deixou seqüelas físicas e psicológicas, doenças e mortes com a destruição de centenas de índios, o que estava a levar a extinção daquela comunidade. A comunicação dos peticionários resultou no pedido de informações ao governo brasileiro que respondeu tecendo comentários sobre o estatuto legal dos índios no Brasil, seus direitos civis e políticos e projetos do Governo para estender a proteção aos índios e suas terras. À luz dessas considerações, a Comissão Interamericana resolveu declarar que “há provas suficientes para declarar que, em face do fracasso do Governo do Brasil em adotar medidas tempestivas e efetivas concernentes aos índios Yanomamis, caracteriza-se a violação dos seguintes direitos reconhecidos pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: o direito à vida, à liberdade, à segurança, do direito à residência e ao movimento, e do direito à preservação da saúde e bem-estar”. A Comissão resolveu ainda recomendar ao governo brasileiro que adotasse medidas de proteção à vida dos Yanomamis, procedesse a demarcação do “Parque dos Yanomamis”, conduzisse programas de educação, proteção médica e integração social dos Yanomamis e informasse a Comissão sobre as medidas adotadas em cumprimento às recomendações. Além do caso 7615, foi submetido à Comissão Interamericana o caso 11745, que denunciou a chacina de dezesseis índios Yanomamis em junho de 1993 em razão da negligência e da omissão do governo brasileiro”. (PIOVESAN, Flávia. Op. cit.Temas de Direitos Humanos.).
1.5.3) Crime de Agressão.
Após longa discussão o crime de agressão foi inserido no Estatuto, mas não foi definido, de plano, fato esse que impossibilitou a sua aplicação por um longo período de tempo, sob pena de se ferir, à época, o princípio da reserva legal. A sua definição, pois, foi relegada para uma etapa posterior.
Ensina-nos Valério de Oliveira Mazzuoli: “ O crime de agressão sempre foi problemático em sede doutrinária e no contexto da prática das relações internacionais. E isto vem desde as primeiras questões envolvendo a licitude ou ilicitude da guerra como meio de solução de controvérsias internacionais. Atualmente, no plano internacional, a guerra foi declarada um meio ilícito de solução de controvérsias internacionais...Como destaca Tarcisio Dal Maso Jardim, a discussão da abrangência de recorrer a ameaça e ao uso da força rendeu várias correntes doutrinárias, como a do direito de ingerência por razoes humanitárias. A confusão se dá porque essa abstenção deve ser contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado ou outro modo incompatível com o objetivo das Nações Unidas. A não – existência de uma definição precisa de agressão, suficientemente abrangente para servir como elemento constitutivo do crime de agressão e, conseqüentemente, para fundamentar a responsabilidade penal internacional dos indivíduos, dificultou, portanto, a inclusão dessa espécie de crime no estatuto de Roma de 1998. Foi na conferência de Versalhes, de 1919, que criou a Sociedade das Nações, que surgiu pela primeira vez a idéia de qualificar os atos de agressão bélica como crimes contra a paz internacional”. (MAZZUOLI; Valério de Oliveira, Tribunal Internacional e o Direito Brasileiro. Revista dos Tribunais, p.65.2009).
Registre-se que no ano de 2010, após quase dez anos de profundos debates, o Tribunal Penal internacional, por força de uma acordo firmado entre os Estados membros do organismo definiu o crime de agressão da seguinte maneira: “planejamento, preparação, iniciação, ou execução, por uma pessoa numa posição de exercício de controle ou direção da ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que pelo seu caráter, gravidade ou escala constitui uma manifesta violação da Carta das Nações Unidas”.
Exemplificativamente, são considerados como sendo atos de agressão sob o manto do Estatuto o bloqueio de portos ou costa marítima de um Estado por forças armadas de outro Estado, assim como a invasão ou ataque por forças de um Estado contra o território de outro Estado. Tais exemplos foram expressamente citados em resolução do TPI em Kampala, no Uganda.
Todavia, nem sempre a norma válida e existente produz efeitos. A norma tem existencia ( porque já foi promulgada ). A norma tem validade ( porque passou por todo o processo legislativo e foi publicada ) , mas a norma nao produz ainda seus efeitos.
Destaque-se que até o ano de 2010 havia a previsão do crime de agressão, mas por não ter sido regulamentado, era uma norma com vigência, mas despida de eficácia no cenário internacional. vigencia e eficácia simbolizam um casal de namorados, de maos dadas. Andam lado a lado. caminham no mesmo passo. Agora, todo casal pode brigar. E daí pode acontecer de a norma ter vigencia e nao ter eficácia. Foi o que ocorreu por quase uma década com o crime de agressão.
Há que se ressaltar que os países formadores do acordo encamparam o entendimento de que o Tribunal Penal Internacional pode exercer jurisdição sobre crimes de agressão, mas tão-somente sobre aqueles crimes perpetrados após o lapso temporal de um ano após trinta Estados terem ratificado a alteração pactuada.
É importante que se diga que o crime de agressão, no entanto, deverá subsumir-se à Carta das Nações Unidas, que estipula alguns exemplos de guerra justa, tais como a intervenção para prevenir ou reprimir ameaças a paz.
Assim, a Assembléia Geral da ONU, por via da Resolução 3.314 que fora aderida em sua Sessão de 14 de dezembro de 1974, já havia vislumbrado a definição do crime de agressão, nos seguintes moldes: “Art. 1º:” Agressão é o uso de força armada por um Estado contra a Soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou qualquer outra atitude que seja inconsistente com a Carta das Nações Unidas”. (A tradução e o exemplo são do professor Guido Fernando Silva Soares, in Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003?... cit. p.16).
O aplicador do direito, que está inserido como membro do Tribunal Penal Internacional, deve fazer uma interpretação restritiva do crime de ameaça, ou seja, deve diminuir o alcance da lei em seu trabalho interpretativo, concluindo-se que a vontade da norma, manifestada de forma abrangente, não permite que seja atribuído a sua letra todo o sentido que, em tese, aparenta ter. Não se deve perder de vista que na atualidade o crime de agressão encontra-se definido, porém, trata-se de um tipo penal aberto.
Ensina-nos Cleber Masson: “Tipo aberto é o que não possui descrição minuciosa da conduta criminosa. Cabe ao Poder Judiciário, na análise do caso concreto, complementar a tipicidade mediante um juízo de valor. É o caso da rixa (CPB, art. 137), pois somente na situação prática poderá se dizer se alguém participou da rixa, ou nela ingressou para separar os contendores”. (MASSON, Cleber, Direito Penal: Editora Método, 2012. V1).
1.6) O TPI e a Constituição da República Brasileira.
Esta Convenção integra o direito interno brasileiro com status de norma constitucional, nos moldes do art. 5º, parágrafo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil, que recepciona em seu corpo os direitos humanos oriundos de tratados com hierarquia igual a das normas constitucionais, e com aplicação imediata.
As regras penais e procedimentais encampadas no Estatuto de Roma, interpretadas apressadamente, podem levar a falsa interpretação de estarem em dissonância com o texto constitucional brasileiro. Todavia, dita incompatibilidade é meramente aparente no que concerne à entrega de nacionais ao Tribunal; a instituição da pena de prisão perpétua; a questão das imunidades em geral e as relativas ao foro por prerrogativa de função; a questão da reserva legal e, por fim, a questão no toca a coisa julgada. Cumpre dizer que a aparente antinomia meramente aparecem desaparecem logo que se utiliza de um método dialógico (diálogo da fontes) para a sua eficaz superação.
Há que se argumentar que a assinatura brasileira lançada ao tratado que instituiu o Tribunal Penal internacional desabrochou a necessidade de análise de validade de sua ratificação, considerando-se os conflitos meramente aparentes de normas do Estatuto de Roma e a Constituição da República Federativa Brasileira.
Enfatize-se que a Constituição de 1988, marco jurídico da institucionalização dos direitos humanos e da transição democrática no país, ineditamente consagrou o primado do respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica brasileira aos sistema internacional de proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, exige nova interpretação de princípios tradicionais, como a soberania nacional e a não-intervenção, impondo a flexibilização e relativização desses valores. Se a prevalência dos direitos humanos é princípio a reger o Brasil no cenário internacional, conclui-se que se admite a concepção de que os direitos humanos é tema global para a CF/88. É tema de legítima preocupação e interesse da comunidade internacional.
A aplicação da pena de prisão perpétua, ressalte-se, excepcional e diante de casos de suma gravidade, com clara possibilidade de revisão, não se constitui obstáculo à participação do Brasil no Tribunal Penal Internacional.
Os princípios contém primazia às regras e resta inequívoco o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que a proibição à execução da pena de caráter perpétuo é voltada somente à lei interna do país, não competindo ao Brasil impor este entendimento no que toca às outras jurisdições independentes.
O Texto democrático inova em relação às demais constituições quando estabelece um regime jurídico diferenciado aplicável aos tratados internacionais de direitos humanos. Por força do art. 5º, § 2º da CF, todos os tratados internacionais de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado introduzido pelo § 3º do mesmo artigo (fruto da Emenda Constitucional nº 45/2004), ao reforçar a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos, vem a adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Nesta hipótese, os tratados internacionais de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, isto é, passam a integrar o Texto Constitucional. Conclui-se, que a Constituição de 1988 acolheu um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um aplicável aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e outro aplicável aos tratados internacionais tradicionais.
A conclusão da existência desse sistema diferenciado em relação aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos é uma conseqüência de uma interpretação axiológica e sistemática da própria Constituição, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compensação do fenômeno constitucional. Com esse raciocínio se conjuga o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, particularmente das normas concernentes a direitos e garantias fundamentais, que hão de alcançar a maior carga de efetividade possível. Já em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais, adicione-se também o fato de o processo de globalização ter implicado a abertura da Constituição à normatização internacional. Tal abertura acarreta a incorporação de preceitos ao bloco de constitucionalidade. Em suma, todos esses argumentos se reúnem no sentido de endossar o regime constitucional privilegiado, conferido aos tratados de proteção de direitos humanos.
Quanto ao impacto jurídico do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito brasileiro, acrescente-se que os direitos internacionais, por força do princípio da norma mais favorável à vítima, que assegura a prevalência da norma que melhor e mais eficazmente proteja os direitos humanos, apenas vêm a aprimorara e fortalecer, jamais a restringir ou deliberar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. A sistemática internacional de proteção vem, ainda, a permitir a tutela, a supervisão e o monitoramento de direitos por organismos internacionais.
Passemos, pois, a análise da questão de sua ratificação e o direito interno brasileiro. Trata-se a ratificação de forma de expressão de consentimento sucessiva à assinatura do tratado, ou seja, denota a manifestação de assentimento da autoridade incumbida para tanto, revelando, pois, externamente a vontade de obrigar-se em seara internacional. Confere assim uma maior segurança no que tange as relações internacionais, propiciando, dessa feita, um maior controle democrático ao Estado visto sob o aspecto interno e externo.
As nuances preliminares a serem destacadas concernem à entrega de nacionais pátrios ao Tribunal Penal Internacional, disposição essa tipificada no art. 89, parágrafo primeiro, do Estatuto de Roma; segundo a qual o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de um cidadão a qualquer Estado em cujo território a mesma se encontre, e solicitar a cooperação estatal no que toca a detenção e entrega da pessoa em tela, sendo, pois obrigatório aos Estados-partes o dever de prestar satisfação ao Tribunal em face de tais pedidos, em consonância com o Estatuto bem como com o seu direito interno.
Há que se atentar que o proibido pela Constituição da República Federativa do Brasil é a extradição de brasileiro natos e não a entrega. Entrega não se confunde com extradição. A entrega de uma pessoa (qualquer que seja a sua origem: nacionalidade e lugar onde resida) ao Tribunal Penal Internacional consiste ao mero repasse do indivíduo a uma jurisdição estrangeira competente para julgá-lo e puni-lo, se necessário for. Em outras palavras: submete-se o acusado ou condenado a própria justiça, ainda que sob os auspício de uma instância internacional.
Resta consagrado no texto constitucional brasileiro, nas disposições de seu art. 5º, LI e LII, que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”; e também que” não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. Tais dispositivos constituem direitos fundamentais do países, constituem, pois, cláusulas pétreas e não podem ser modificados por legislação infraconstitucional face ao seu elevado grau de estabilidade dentro do sistema.
Já o instituto da extradição, ensina-nos Jacob Dolinger: “é o processo pelo qual um Estado atende ao pedido de outro Estado, remetendo-lhe pessoa processada no país solicitante por crime punido na legislação de ambos os países, não se extraditando, via de regra, nacional do país solicitado”. (DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral, 6 ed. Ampl. E atual. Rio de Janeiro. Renovar, 2001. p. 238).
Por tais razões é que o Estatuto de Roma, levando em conta disposições semelhantes de vários textos constitucionais modernos faz diferença ontológica entre os termos entrega e extradição. Nas precisas palavras de Chapus de Medeiros: “a diferença fundamental consiste em ser o Tribunal uma instituição criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de forma justa, independente e imparcial.
Na condição de órgão internacional, que visa realizar o bem estar da comunidade mundial, porque reprime crimes contra o próprio Direito Internacional, a entrega do Tribunal não pode ser comparada à extradição”. (CHAPUZ de Medeiros, Antônio Paulo. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. In: O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/ Coordenação de Publicações, 2000. Série Parlamentar, n.110, p.209 – 215).
Daí estar correta a assertiva de que o ato de entrega é aquele realizado pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diversamente do instituto da extradição, que é feita de um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade em relação a indivíduo nesse último processado ou condenado e lá refugiado. Em outras palavras: a extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diversamente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, em que a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.
Já no que concerne a pena de prisão perpétua, outro instituto de grande celeuma por trazer em seu bojo aparente antinomia entre a Lei Maior do pais e o disposto no Estatuto de Roma.
Dispõe o Tratado de Roma em seu art. 77, b: se o crime for extremamente grave e considerando as circunstancias pessoais do condenado caberá prisão perpétua. Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XLVII: “Não haverá penas: de caráter perpétuo”.
Vale ressaltar que a respectiva previsão constitucional pátria nem mesmo pode ser alterada por emenda constitucional, tendo em vista trata-se de cláusula pétrea, direito e garantia fundamental do indivíduo. E já que o Estatuto de Roma não admite ratificação, assinatura e adesão com reservas pelos países o problema parece insolúvel. Mas afirmamos: tal conflito é meramente aparente e não real.
A origem da regra esculpida pelo Tribunal Penal Internacional descende aos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, onde se estabeleceu a pena de morte, tendo continuidade aos Tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda, que previam não a pena de morte, mas a pena de prisão perpétua, em uma clara gradação da pena de morte dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio. Com um rigor ainda menor (gradação), chega-se ao Tribunal Penal Internacional onde a pena de prisão perpétua ficou restrita a crimes de extrema gravidade, e ainda assim com a possibilidade de revisão decorrida 25 anos, nos termos do art. 110 do Tratado de Roma. Vamos terminar o rodo artigo 4º da CR que diz que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
III - autodeterminação dos povos; Nada a dizer sobre isso. É o respeito à independência dos povos.
IV - não intervenção; É o respeito à soberania dos povos.
V - igualdade entre os estados; Essa igualdade entre os estados é exatamente o supedâneo de validade da imunidade de jurisdição. O que dá legitimidade a imunidade de jurisdição é essa igualdade entre os estados. O estado acreditante, aquele que envia a representação diplomática não se submete ao poder de império jurisdicional perante o estado acreditado.
VI - defesa da paz; forças brasileiras estão no Haiti promovendo a da paz.
VII - solução pacífica dos conflitos; o Brasil um país pacifista.
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político. A respeito do asilo político ou refúgio eu vou fazer umas considerações para encerrarmos. Tanto o asilo quanto o refúgio tem caráter humanitário, só que há distinções técnicas entre um e entre outro. A concessão do status de refugiado é ato declaratório. O refúgio tem caráter declaratório. A condição de refugiado precede o seu reconhecimento. Ou seja, é a mesma coisa que o beneficiado se subsume, se enquadra em algum ponto da definição básica e internacionalmente consagrada de refugiado. Tanto as convenções internacionais quanto a Lei 9474/97 consideram refugiados todos aqueles que tenham fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Há um elemento subjetivo que é o temor e um objetivo que é a perseguição. Já a outorga da condição de asilado é ato construtivo. O asilo tem natureza de ato constitutivo. Sua concessão é uma decisão política. É um ato de soberania. O ato que consegue o asilo prescinde e independe de motivação e exposição de critérios. O estado asilante não se compromete com princípios fundamentais do refúgio, por exemplo, o da não devolução. Por conseguinte ao grau de proteção no asilo é mais brando.
Indaga-se: Qual é a posição brasileira em face da aplicação das normas concernentes aos direitos humanos?
A Constituição Federal de 1988, nos termos do artigo 1.º, inciso III, impõe o valor da dignidade humana. “A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional”.
O artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 afirma que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Incluiu, pois, entre os direitos protegidos pela Constituição Federal, os direitos determinados nos tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário.
Ao considerarem-se, portanto, os tratados internacionais, ratificados pelo Estado brasileiro, podemos listar inúmeros direitos neles enunciados, que passam a fazer parte do Direito brasileiro. Esses direitos são declinados não de maneira taxativa, mas de forma exemplificativa. Logo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos torna abrangente o universo dos direitos constitucionais assegurados.
Conclui-se, pois, que os tratados internacionais de direitos humanos garantem sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas essas hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional.
1.7) Conclusão.
A Constituição da República, de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, sem dúvida alguma, buscou dar prioridade aos Direitos Humanos como valor supremo, prevendo a proteção de institutos como a tortura, o racismo, o asilo político, proteção as crianças e adolescentes, aos índios, a dignidade da mulher, etc.
Em nível Externo, o Brasil ratificou o Estatuto de Roma e se comprometeu com a Ordem Internacional através do mesmo a zelar pelos Direitos Humanos, sob pena de entrega do cidadão às normas do Tribunal Penal Internacional com normas específicas sobre os crimes elencados por ele, quais sejam, genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.
Mediante tais fatos, conclui-se que o Brasil prima pela criação de um Tribunal de Defesa dos Direitos Humanos e nesse sentido vem caminhando desde as duras e longas conquistas pela democracia, tendo em vista que norteia-se por princípios destes mesmos direitos .
Com lastro em tal assertiva nosso país poderá ratificar o Estatuto sem qualquer reserva.
Assim, para que haja total efetividade do Tribunal Penal Internacional em solo brasileiro requer-se o quórum de aprovação de emenda constitucional, qual seja, 3/5 ( três quintos) iniciando uma longa, porém rica caminhada rumo à conservação dos Direitos Humanos no universo que nos cerca.
1.8)Bibliografia.
1.CHAPUZ de Medeiros, Antônio Paulo. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. In: O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/ Coordenação de Publicações, 2000. Série Parlamentar, n.110.
1. CHOUKR, Fauzi Hassan e AMBOS, Kai. Tribunal Penal Internacional. São Paulo.Ed. Revista dos Tribunais, 2000.
3.GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal Penal Internacional. Consulex, Brasília, n. 37, p. 26-33, 31 jan. 2000.
4.DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral, 6 ed. Ampl. E atual. Rio de Janeiro. Renovar, 2001.
5.FERNANDES; Bernardo Gonçalves.Curso de Direito Constitucional, 2ª edição. Editora Lúmen Juris.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002.
6.GODARACENA, Oscar López, Cooperación Con La Corte Penal Internacional. Montevideo. Uruguay. 1ª Edición. FCU, 2008.
7.HUHLE, Ranier. De nuremberg a la Haya. Ko’aga Rone’eta. 1997.
8.LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Editora Malheiros, 2006.
9.MASSON, Cleber, Direito Penal: Editora Método, 2012. V1.
10.MAZZUOLI,Valério de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, 2ª edição, Revista dos Tribunais.
11.NORAT; Marcus Samuel Leite. Direito para concursos. Edijur,2011.
Notas:
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[1] WEIS, Carlos. Direitos Humanos comtemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 69.
[2] PIOVESAN, Flávia. op. cit. p. 48.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 226-227
[4] ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p.48.
[5] PIOVESAN, Flávia. op. cit.
[6] LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Perspectiva/FUNAG, 1994. p.54-55
[7] LINDGREN ALVES, J. A. Op. cit. Os Direitos Humanos como Tema Global. p.55-56
[8] PIOVESAN, Flávia. Op. cit.Temas de Direitos Humanos. p.131-132
[9] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.111
[10] MARZAL, Alejandro del Toro. Apud CIRENZA, Cristina de Freitas; NUNES, Clayton Alfredo. Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes e Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. In: Direitos Humanos – Construção da liberdade e da igualdade. Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Estado, 1998. p. 418.
[11] ANTÓN, Vives. Apud CIRENZA, Cristina de Freitas; NUNES, Clayton Alfredo. Loc. cit.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRIGAGÃO, Paula Naves. O Tribunal Penal Internacional e os Direitos Humanos. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr. 2012. Disponivel em: <https://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=5.36539&seo=1>. Acesso em: 14 maio 2012.
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